Da mesma forma que os produtores californianos desafiaram a dominância francesa no vinho, no episódio que ficou conhecido como o Julgamento de Paris, o tradicional mercado dos whiskies escoceses e irlandeses também foi abalado por um novo entrante nos últimos anos.

E neste caso, os desafiantes vinham do outro lado do planeta, com a precisão e o olhar para o detalhe típicos dos povos orientais. Eram os whiskies japoneses, que nas duas últimas décadas surpreenderam os apreciadores da bebida por sua alta qualidade e por arrebatar alguns dos principais prêmios globais do setor.

Não que a produção de whiskies no Japão fosse propriamente uma novidade. A história da bebida no país remonta a 1870, mas se consolida na primeira metade do século 20 quando Masataka Taketsuru vai estudar em Glasgow, casa-se com uma escocesa e volta ao Japão para fundar a destilaria Yamazaki, em parceria com Shinjiro Torii.

Mais tarde, os dois se separam e fundam os dois maiores conglomerados japoneses do setor: a Suntory, de Torii, e a Nikka, de Taketsuru.

Hoje há destilarias espalhadas por todo o território japonês – mas a surpresa foi a qualidade da bebida.

Apesar da história centenária, os japoneses só atraíram a atenção do mundo (ainda dominado por escoceses e irlandeses) em 2015, quando o Yamazaki Single Malt Sherry Cask 2013 foi eleito o melhor whisky do mundo por Jim Murray, da prestigiosa publicação Whisky Bible.

Foi o momento “Julgamento de Paris” para os whiskies japoneses – e os resultados só melhoraram nos últimos anos. Em 2020 foi a vez do Hakushu 25 anos ganhar a categoria de melhor single malt do mundo no World Whisky Awards, e em 2022, o Yamazakura Sherrywood Reserve foi eleito o melhor blended malt.

Para quem gosta de whisky (ou quer conhecer mais), a beleza dos japoneses é descobrir um novo mundo, feito com cuidado, delicadeza e as características dos diversos terroirs das diferentes ilhas do país (e aqui surge uma polêmica que detalho mais abaixo). A boa notícia é que excelentes exemplares japoneses estão disponíveis no mercado brasileiro, ainda que com preços bem salgados.

“Os whiskies japoneses têm algumas características bem distintas dos escoceses. A primeira vem do fato de que eles são os únicos a usar barricas de carvalho japonês no envelhecimento da bebida, e essa madeira, chamada Mizunara, traz notas de baunilha e uma picância particular ao whisky,” explica Alexandre Tito, expert em whisky da WhiskyRio.

“Além disso, ao contrário do que ocorre na Escócia, no Japão é comum uma destilaria específica possuir vários tipos de destiladores, criando whiskies com características diferentes para seu blend,” disse Tito.

Para ele, os whiskies japoneses mais adequados para iniciantes no mundo da bebida seriam o Hibiki Harmony – um blend feito com maltes das prestigiosas destilarias Yamazaki, Hakushu e Chita – e o próprio Chita, um single grain famoso no Japão por suas notas de baunilha e frutas tropicais, muito usado em coquetéis.

“O Harmony é um blend extremamente bem construído, enquanto o Chita é um whisky mais suave, bom para quem ainda está começando a formar seu paladar.”

Já os mais exigentes encontram no mercado brasileiro algumas boas opções de whiskies mais complexos – como o Yamazaki 12 anos e o Hakushu 12 anos.

Segundo Tito, no mercado internacional alternativas interessantes seriam os single malts Hakushu 18 anos, Yamazaki 25 anos e o Nikka Yoichi (este com notas defumadas bem pronunciadas, graças ao uso de turfa local), ou algum produto da linha Chichibu (há algumas versões exclusivas e disponíveis nos principais mercados).

A escolha aqui depende diretamente do gosto e preferência de cada bebedor, mas a discussão sobre as características de cada um desses whiskies já criou uma acalorada polêmica entre os apreciadores de vinho e de bebidas destiladas.

“Muita gente diz que não é possível aplicar o conceito de terroir a bebidas destiladas, porque ele estaria necessariamente ligado a questões como solo, nível de pluviosidade, etc, e o impacto de todas essas características nas uvas,” diz Tito. “Mas no Japão, há destilarias em localizações muito distintas, como à beira do mar ou no meio de florestas, e isso provoca mudanças claras nas características dos whiskies.”

Seria o caso do single malt Hakushu, produzido numa destilaria da Suntory no meio das florestas virgens do Monte Kaikomagatake, conhecido como os Alpes japoneses. Feito com água resultante da filtragem de chuva e neve por pedras de granito de mais de mil anos, diz-se que o Hakushu reflete o microclima onde é produzido e oferece ao tomador aromas delicados e notas frescas de ervas e frutas.

Independentemente do seu lado na polêmica do terroir, descobrir o novo mundo e a complexidade dos whiskies japoneses parece ser uma linda viagem.

 

Flávio Ribeiro de Castro ama comida, vinhos e charutos. (OK, whisky também.)