A Bienal de Veneza abriu na semana passada sua 59ª edição – e a primeira, desde que o evento começou há 127 anos, a exibir uma maioria avassaladora de artistas mulheres.
Do total de 213 artistas desta edição – batizada de Milk of Dreams – somente 21 são homens. A curadora Cecilia Alemani – que também é diretora artística do High Line em Nova Iorque – teve que rebater críticas de que quis fazer um “manifesto feminino.” Ela disse em entrevistas que dialoga normalmente com muitas artistas e que a escolha curatorial amplamente feminina foi natural.
O que foi abertamente proposital foi a criação de cinco espaços – que ela chama de “cápsulas do tempo” – contendo obras e documentos históricos das artistas que participaram dos movimentos como Surrealismo, Dada e Bauhaus, mas que não tiveram a devida visibilidade na época.
Alemani chama as cápsulas de “mostras dentro da mostra” porque, além de fazerem uma reinserção histórica, criam um diálogo entre artistas do século XX (algumas ainda vivas) com obras comissionadas de artistas jovens.
“Andar pela Arsenale [a antiga fábrica que a cada dois anos hospeda a mostra] é uma viagem no tempo através dessas cinco cápsulas,” Maguy Etlin, que preside o Conselho Consultivo Internacional da Bienal de São Paulo, disse ao Brazil Journal. Ela esteve na abertura para convidados semana passada.
A curadora conseguiu transmitir de forma clara e didática seu processo criativo, tanto nos textos quanto na escolha das obras. Diferente de algumas exposições, em que os textos são impenetráveis, a articulação de Alemani é tangível e próxima do público.
Seguindo o ineditismo, as premiações foram todas para mulheres, sendo ainda a primeira vez que duas artistas negras foram premiadas. O Leão de Ouro pelo conjunto da obra foi dado à pintora e poeta chilena Cecilia Vicuña e para a escultora alemã Katharina Fritsch. O Reino Unido recebeu o Leão de Ouro de melhor pavilhão, representado por Sonia Boyce. A melhor participação individual foi da escultora americana Simone Leigh. Boyce e Leigh foram as primeiras negras a representarem seus países.
O trabalho de Boyce para o pavilhão britânico, com “Feeling Her Way”, apresenta um coro de vozes femininas negras contra um papel de parede de mosaico e estruturas 3D geométricas, aliando sentimentos de liberdade, poder e vulnerabilidade.
Leigh apresentou, além de outras obras no pavilhão americano “Sovereignty”, uma escultura monumental, “Brick House”, representando uma figura feminina negra – parte mulher, parte casa – que fica no Arsenale.
O Brasil está representado por Jonathas de Andrade, que ocupa o pavilhão do País este ano, e por outros cinco brasileiros espalhados entre o Giardini e o Arsenale: Jaider Esbell, Lenora de Barros, Luiz Roque, Rosana Paulino e Solange Pessoa.
No pavilhão, o conjunto de obras de Jonathas, “Com o coração saindo pela boca”, faz o visitante “entrar por um ouvido e sair pelo outro” – literalmente. O alagoano usa expressões populares que carregam certa ambiguidade para produzir esculturas, fotografias, e uma vídeoinstalação.
A Bienal está focada em três eixos temáticos: corpos e suas metamorfoses; indivíduos e tecnologias; corpos e a terra.
Neste terceiro eixo, ligado à terra, talvez o nome mais relevante seja a pintora e escritora surrealista inglesa Leonora Carrington. Aliás, o título da Bienal foi tirado de um livro de Carrington, que foi estudar em Paris com 19 anos e conviveu com Salvador Dalí, Luis Buñuel, André Breton, Man Ray, Picasso e Max Ernst, com quem viveu uma paixão arrebatadora; como Ernst era bem mais velho, Carrington passou a ser conhecida na fofoca parisiense como ‘la femme-enfant’.
Acontece que só ela ficou de fora do reconhecimento que todo esse grupo recebeu na época, passando grande parte da vida desconhecida. Morando no México desde o começo da Segunda Guerra, Carrington acompanhou incrédula um quadro seu alcançar US$ 1,5 milhão num leilão da Christie’s.
Seu livro Milk of Dreams – que empresta o nome à Bienal – narra um mundo mágico em que a imaginação renova a vida. Em tempos cada vez mais literais, de julgamentos expressos e implacáveis, a obra de Carrington e a curadoria de Alemani fazem do sonho o motor de mudança da realidade.