Quando, em 1972, Francis Ford Coppola lança O Poderoso Chefão, baseado no best-seller de Mario Puzo, o submundo ganhou um glamour.

Puzo compilara uma série de histórias da máfia americana, sempre enxertadas com temas primários, como a proteção da família e a superação dos menos favorecidos. Havia um código de honra entre os gangsters, num universo masculino e violento, que, por motivos de complexa compreensão, fascinavam. Na trama de O Poderoso Chefão, o imigrante vencia. O filme se tornou um cult, e os bandidos se transformaram em heróis – em mitos.

O poder que floresce numa sociedade marginal, com regras e valores próprios, assombra. Esse poder alimenta o lado sujo do Estado, que cobra um preço para fingir que não vê a doença.

Agora, o Brasil tem chance de encarar de frente seu próprio crime organizado e fazer a autópsia de um Estado falido com o documentário Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho, dirigido por Fellipe Awi, Ricardo Callil e Gian Carlo Bellotti, com roteiro de Awi e Callil, e polido com a narração e supervisão artística do multitalentoso Pedro Bial.

Calil já havia mostrado sua competência e sensibilidade com Narciso em Férias e Eu sou Carlos Imperial. Awi tinha deixado sua marca em Filho Teu Não foge à Luta, onde conta a saga dos lutadores brasileiros no MMA.

O experiente Bellotti, por sua vez, foi o responsável, entre outros, por Em Nome de Deus, documentário sobre João de Deus. Pedro Bial dispensa apresentações – é um Midas: com ele, até o Big Brother ficou interessante. Em Vale o Escrito, esses espetaculares jornalistas apresentam uma obra perturbadora.

Na obra de seis capítulos, em exibição no Globoplay, eles contam a história dos chefões do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Uma história que não acabou.

Cada lugar tem os heróis que merece. No Rio, purgatório da beleza e do caos, os chefes da contravenção do jogo do bicho não viviam escondidos; desfilavam. Eram os mecenas e responsáveis pelo Carnaval, a maior e mais conhecida festa popular. Eram festejados como celebridades, e cortejados por políticos e disputados por autoridades. Uma versão tupiniquim de O Poderoso Chefão.

Embora contraventores, as personagens encontradas no documentário são todas conhecidas, notórias. O rei está nu, mas ninguém diz nada.

“Marginal” significa algo ou alguém que se encontra ao lado do curso do rio, na sua borda, na margem. Designa, por metáfora, quem não se enquadra na sociedade – e fica à margem dela. Em Vale o Escrito, apresenta-se o Rio de Janeiro em que não está claro onde fica essa borda. Quem é o marginal?

O jogo do bicho tem uma história centenária. Começa como uma brincadeira no zoológico. Logo, ganha as ruas. Ingressa na informalidade, longe dos tributos e das regras legais, perto da violência e da corrupção. No documentário, narra-se a construção dessa frágil e brutal organização, cujas disputas, seja pelo controle ou apenas por um ponto de anotação, muitas vezes se decide com chumbo.

Com uma rica pesquisa de arquivos, depoimentos dos protagonistas e coadjuvantes, conta-se as histórias das famiglias que controlam a contravenção. Como repartem a cidade, cada uma dominando sua área. Como se unem. Como brigam. O sistema se corrói por dentro, já que as desavenças intestinas se revelam as mais deletérias.

As personagens, como narra Pedro Bial, poderiam ser de novela. Uma boa novela. De certa forma, os temas arquetípicos já foram examinados pela Bíblia e por Shakespeare: irmãs gêmeas que se odeiam, o bastardo que luta pelo seu reconhecimento, o sobrinho que toma o controle do reino, genro contra genro, o perseguidor que vira perseguido, o enterro dos filhos, as mulheres (quase todas) resignadas e (todas) humilhadas, assassinatos e assassinatos… Está tudo ali – ou melhor, está tudo aqui, debaixo do suvaco do Cristo.

No Rio, todos frequentam as mesmas festas, “malham” na mesma academia de ginástica, dançam a mesma música. Não há fronteiras claras, onde começa e onde acaba o errado. Tudo se tolera, ou melhor: a sociedade é educada para não ver o todo, mas olhar apenas para parte. O Carnaval e os presentes bastam; para que entender o resto?

No documentário, choca a tranquilidade e franqueza com que várias pessoas reconhecem seus desmandos. São dezenas de depoimentos, de figuras centrais dessa operação, contando suas intimidades, oferecendo versões mais ou menos críveis. Não há pudor.

Em muitas passagens, fica nítido o cinismo ou o silêncio eloquente. Porém, predomina nas exposições a verdade crua. É uma verdade assustadora porque nos revela a fragilidade das instituições. Transparece a certeza da impunidade, a certeza da impotência do Estado. Um Carnaval sem fantasia.

Em Vale o Escrito vemos, pelo espelho, uma cidade decadente. As roupas, os penteados, as festas, o linguajar, o machismo, a truculência. Ficam expostas as vísceras do Rio de Janeiro.

O documentário não fala apenas do passado. A saga continua. Uma das grandes virtudes dessa série jornalística é contar os fatos, sem preconceitos, sem lições de moral: a vida como ela é. O Rio como ele sempre foi.

Uma realidade escondida debaixo de muitas camadas de hipocrisia, mas que grita. Uma história sem heróis, sem glamour, sem ensinamentos edificantes, da qual todos somos vítimas e, de alguma forma, responsáveis.

Há redenção? Isso depende da sociedade. De alento, resta a verdade de que o primeiro passo para a cura é o diagnóstico.

Vale o escrito nos desafia. Como o documentário demonstra, num mundo marginal, o que está escrito vale pouco. Nesse mundo – o nosso mundo – vale tudo.

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados (FCDG).