Nos anos 90, José Augusto Berbert, crítico de cinema do jornal A Tarde, da Bahia, ainda escrevia no topo de sua coluna a epígrafe: “Mantenha Salvador limpa: mate uma bicha por dia.Levy Fidelix

A incitação só parou quando Caetano Veloso escreveu uma carta ao jornal dizendo que a Bahia não podia tolerar aquilo. (A Tarde não publicou a carta, mas um jornal concorrente, sim. Berbert foi obrigado a parar sua exortação, mas continuou escrevendo no jornal.)

Mais tarde, a neta de Berbert, num exemplo de que a humanidade tem jeito, pediu desculpas pela intolerância disseminada pelo avô.

A velha política assistencial-terrorista do PT está na frente nas pesquisas, e a ‘nova política’ de Marina Silva ainda tenta virar o jogo, mas a política que mais avança no Brasil nos últimos anos, a que mais ganha espaço — nos templos, nas rádios e no Congresso — é a política do ódio.

O auge veio na madrugada de segunda-feira, quando o candidato Levy Fidelix, nanico em vários sentidos, deu uma contribuição gigante para exemplificar o quadro de escuridão em que vive boa parte do Brasil.

A pergunta era sobre o amor. “Por que as pessoas que defendem tanto a família se recusam a reconhecer como família um casal do mesmo sexo?” Mas Fidelix, uma figura proto Homo sapiens, preferiu a hipocrisia de que uma família só existe para fins de reprodução: “Pelo que eu vi na vida, dois iguais não fazem filho, e digo mais: aparelho excretor não reproduz”.

Infelizmente, essa foi a parte cômica. Em seguida, o nanico comparou homossexualidade com pedofilia — o equivalente a comparar heterossexualidade com estupro — e escolheu um caminho historicamente perigoso ao dizer: “Então, gente, vamos ter coragem, nós somos maioria, vamos enfrentar essa minoria. Vamos enfrentá-los!

Fidelix é uma bactéria política que se alimenta de um substrato de ignorância e o decompõe em outra substância altamente nociva ao corpo social: o ódio contra minorias. Ele está longe de ser o primeiro político-bactéria a fazer essa fagocitose — vários pastores o precedem — e a única vacina contra eles é uma tríplice de educação, informação e um bom detergente pra lavar aquela boca suja.

Ainda assim, cabe perguntar: Para onde vai um país no qual o discurso civilizado é, devagar mas constantemente, substituído pelo discurso do ódio? Para onde vai a política quando pequenos partidos apelam à ignorância mais virulenta para conclamar ao ‘enfrentamento’ de minorias e jogar brasileiro contra brasileiro? A ascensão do partido nazista alemão deveria servir de alerta histórico.

Há uma tendência na sociedade a relevar as palavras de Fidelix como bobagem. É a mesma preguiça cívica que produz nossa acomodação com os buracos na rua ou com a falta de médicos no hospital público. “É assim mesmo,” diz a voz que convida à paralisia. “Os políticos são assim.” Em vez disso, o país que no ano passado foi às ruas exigir mudanças deveria tentar ‘tolerância zero’.

Se em vez de ‘gays’ Fidelix estivesse descrevendo seu nojo por alguma etnia, sua conclamação ao enfrentamento ainda pareceria irrelevante aos olhos de tantos? A tentativa de minimizar o assunto demonstra uma ‘tolerância à intolerância’ indigna de um país tão diverso e supostamente generoso.

Mas o discurso do ódio é ainda mais generalizado — e  socialmente aceito — do que supõem os moradores do eixo Itaim-Leblon.

Quando Berbert destilava seu veneno nas páginas de A Tarde, é claro que os leitores baianos achavam graça — a menos, claro, que o leitor fosse baiano e gay.

Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, fazia um exercício para demonstrar a desumanidade da coisa. Abria suas palestras com a frase infame: “Mantenha Salvador limpa. Mate uma bicha por dia.” A audiência caía na gargalhada. Em seguida, Mott repetia a frase, substituindo a palavra ‘bicha’ por ‘criança’. As risadas agora eram meio sem graça. Em seguida, repetia com a palavra ‘velho’. Já não se ouvia riso algum.

Não é preciso voltar à Bahia dos anos 90 para ver a intolerância em ação. A fala de Fidelix vem da mesma matriz que produz, repetidamente, os gritos de ‘macaco‘ nos estádios. Também é comum no interior do Brasil outra variação sobre o mesmo tema: “viado tem mais é que morrer!

E, no ano passado, o deputado federal Luis Carlos Heinze, do PP do avançado Estado do Rio Grande do Sul, disse durante uma audiência pública que “quilombolas, índios, gays e lésbicas” são “tudo o que não presta”.  Obviamente, o deputado deve ser de alguma raça superior.

A cultura do ódio gera resultados. Dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos mostram que os crimes com motivação homofóbica cresceram 47% em 2012 em relação ao ano anterior. Sessenta por cento destes crimes são contra jovens de 15 a 29 anos, e 70% deles ocorrem dentro de casa. O Governo ainda não publicou os dados de 2013, mas não é preciso ser um gênio — você pode ser o Levy Fidelix! — para adivinhar o que vem por aí…

É possível ser religioso sem ser calhorda. E é possível ser conservador sem se tornar uma figura odiosa.

Mas o ovo da serpente tem que ser reconhecido, e o discurso do ódio, denunciado pelo que é.

PS: A coluna de hoje é uma homenagem às crianças, jovens e adolescentes que, sob a inspiração e o encorajamento de discursos como o de Levy Fidelix, apanham em casa ou são rejeitados por suas famílias apenas por sua orientação sexual. A vida lhes obrigou a ter a coragem que falta aos principais candidatos à Presidência.