O grande mal da nossa época não é a Previdência quebrada, nem nosso sistema tributário feito para criar dificuldades, nem mesmo o Orçamento engessado pelos constituintes-sonhadores de 1988.  Estes são apenas os sintomas.  

A grande doença republicana do nosso tempo é o populismo, que começa na política e desemboca na economia, turva os diagnósticos e impede que a classe política adote as medidas duras, racionais e necessárias para sairmos de nosso eterno estado de crise.

A 42 dias do primeiro turno da eleição presidencial (e para o Congresso), o brasileiro médio parece mal informado sobre a falência do Estado. Pouca gente — mesmo entre os habitantes do Jardim Europa ou do Jardim Pernambuco, no Rio — entende a gravidade de nosso quadro fiscal e as verdadeiras rupturas que serão necessárias para reverter uma trajetória que, se mantida, nos levará ao calote e/ou à inflação descontrolada em pouco tempo.

Agora, no meio de uma campanha eleitoral que tem discutido estas questões apenas superficialmente, surge um livro que analisa as causas desta nossa bancarrota com a profundidade necessária, o didatismo imprescindível e uma honestidade intelectual cada vez mais escassa — mas sempre presente no trabalho dos autores Fabio Giambiagi e Rodrigo Zeidan.

“Apelo à Razão”, que sai agora pela Record, tem como subtítulo “A Reconciliação com a Lógica Econômica – Por um Brasil que deixe de flertar com o populismo, com o atraso e com o absurdo”.

Neste seu trigésimo livro, Giambiagi presta um serviço ao País retornando aos temas que se tornaram sua obsessão: nossa incapacidade de colocar de pé uma reforma previdenciária realista; a força do “pensamento mágico”; a dificuldade do país em viver de acordo com os próprios meios; e a crítica às soluções fáceis e erradas.

“Quando eu tinha 25 anos e estava começando a lidar com as restrições impostas pela realidade, eu tinha brigas com meu pai. Eu dizia que se o Brasil fizesse progressos sucessivos, 30 anos depois poderia ser parecido, por exemplo, com a Espanha,” diz Giambiagi. “Ele ficava incomodado e rejeitava minhas análises, e eu, na época, não entendia o por quê da sua irritação. Só muitos anos depois, quando fui ficando mais velho, o motivo se tornou claro: ele não dispunha de 30 anos para poder ver esse Brasil que tanto ele como eu almejávamos. Agora que tenho a idade que ele tinha na época, quem se irrita com a falta de senso de urgência do país em atacar os seus problemas sou eu”.

Convidado a escrever o prefácio do livro, escrevi este desabafo:

“Quem conhece a economia brasileira sabe que não há nada de errado com o país que não possa ser consertado. Depois de darmos inúmeros murros em pontas de faca — e, mais recentemente, recorrermos a bruxarias heterodoxas — nunca o diagnóstico sobre o que precisa ser feito foi tão consensual na elite econômica. E, ainda assim, a política tem sua lógica interna e se recusa a conversar com a realidade e o pragmatismo.

Há um preço a pagar, no curto prazo, para que o longo prazo nos sorria enquanto país, e este preço — caríssimo para a classe política — significa abdicar da ideia de que o Estado tudo pode, tudo deve e tudo fará pelos seus “filhos”, que, por sua vez, frequentemente se vêem como titulares de direitos e jamais de obrigações.

É uma falácia que o pai da República brasileira seja o Marechal Deodoro da Fonseca, que a proclamou.  O verdadeiro pai aqui não foi o biológico, mas o de criação: Getúlio Vargas, um homem “de outra época”, mas eternamente presente em nosso imaginário.  Nem o tiro que deu no próprio peito fez Getúlio desencarnar do espírito do brasileiro.

É de Getúlio que derivamos a ideia de “direitos” que nos são eternamente negados; é Getúlio que coloca a “luta dos trabalhadores” contra o patrão malvado no centro da narrativa social brasileira; e é Getúlio quem nos promete que o Governo será nosso eterno ‘sugar daddy’, sempre pronto a satisfazer nossos desejos mais volúveis.

Até que… um dia, o papai Estado bate as botas — e descobrimos que o vento será nossa herança. Até que nos damos conta de que não são nossos desejos “volúveis” que não estão sendo atendidos, e sim nossas necessidades mais básicas: a polícia na rua, um hospital que funcione, e uma escola que prepare para a vida.

Decepcionados e frustrados com este fracasso do Estado, procuramos culpados na classe política que nós mesmos elegemos a cada quatro anos e intuímos que a corrupção é o maior dos males, quando, na verdade, a ineficiência do Estado nos rouba mais vidas e oportunidades todos os dias do que 10 Lava Jatos descobririam em meio século.” 

O Brazil Journal conversou com Giambiagi sobre o “Apelo à Razão”.  O livro está em pré-venda na Amazon, na Saraiva, na Livraria Cultura, e na Travessa do Rio.

A Previdência está tirando o oxigênio do resto do Orçamento?

Giambiagi: Vejamos o que está acontecendo nos chamados “setores sociais”. No triênio 2015/2017, a despesa com educação do governo federal caiu em termos reais nada menos que 9% a.a., a despesa com saúde, 2% a.a., e a despesa com desenvolvimento social – leia-se, Bolsa Família – 3% a.a. Estamos gastando mais com aumentos reais a funcionários públicos e despesas com aposentadoria e menos com políticas essenciais para o cidadão. Sem reformas, isso vai piorar. 

O livro mostra a tendência de evolução da pirâmide etária brasileira: claramente, a participação das pessoas em idade de trabalhar na composição da população total do país começará a declinar na próxima década. Com o fim do bônus demográfico, o crescimento do país dependerá cada vez mais do aumento da produtividade – que tem sido sofrível. Sem reformas, sem competição e sem a alavancagem da produtividade, seremos um país sem futuro. Quando eu tinha 25 anos, minha geração sabia que o país tinha muitos problemas, mas havia confiança no amanhã. Hoje, quando a geração de nossos filhos tem 25 anos e não se encontram perspectivas, quem pode quer migrar. Vamos aceitar isso?

Há alguma mensagem otimista?

Giambiagi: O que é para ser feito está ao alcance da mão, só depende de nós. Em países como Venezuela, Haiti ou Síria, não se sabe nem por onde começar, tal é a intensidade do desastre. Ou não há capital humano, ou não se dispõe do mínimo de articulação, ou há uma destruição que para ser superada requer uma ajuda maciça do exterior que dificilmente ocorrerá. Nada disso está presente aqui. 

Quando um estrangeiro chega ao Brasil, ele não consegue entender por que não podemos sair da crise. As soluções são viáveis. Dependem do que? De coisas como a adoção de regras de aposentadoria inteiramente aceitas em outros países; da abertura da economia à competição num prazo perfeitamente razoável de 4 ou 5 anos; da continuidade de obediência a uma regra fiscal que já foi aprovada no Congresso; da formação de uma coalizão parlamentar num Congresso onde os grupos radicais são minoritários… Não há razões para nos abandonarmos ao pessimismo. Estamos passando um momento difícil? Não há a menor dúvida. A saída é simples? Não. Há consensos formados? Eu diria que ainda falta para chegar a isso. Nosso amigo Octavio de Barros costuma dizer que precisamos de uma liderança política que seja simultaneamente reformista, agregadora, inspiradora e articulada. Não são atributos abundantes em Brasília, reconheço, mas o que precisamos requer diagnóstico, energia e capacidade de implementação. O país não precisa de um salvador da Pátria e sim de entrar em paz consigo mesmo.

Fale um pouco sobre os dados impressionantes que o livro traz sobre a Previdência.

Giambiagi: Você usou a expressão adequada: os números são realmente impressionantes. Há três informações que gosto de destacar. A primeira: o gasto federal com aposentadorias, pensões e benefícios previdenciários em geral era de 3,5% do PIB em 1988 e será de quase 10,5% este ano. Em 30 anos, triplicamos o peso relativo da Previdência, justamente quando a demografia era mais favorável. Nós sacamos contra o futuro. Uma avaliação benigna é: fizemos escolhas equivocadas. Eu sou mais duro: cometemos um crime.

A segunda informação: quando foi lançado o Plano Real em 1994, havia 300 mil mulheres aposentadas por tempo de contribuição. Hoje estamos a caminho de 2,1 milhões. O número se multiplicou por um fator de 7. Ainda é uma variável que está crescendo 6 % ou 7 % a.a. em termos físicos. O céu é o limite? 

A terceira: na média, o brasileiro se aposenta por tempo de contribuição aos 54 anos – no caso das mulheres, aos 53. Ora, a essa idade a expectativa de vida de uma mulher é de 83 anos. Não é preciso ser especialista em atuária para perceber que há algo de muito errado com um conjunto de regras que permite a uma pessoa contribuir 30 anos com 31 % do seu salário e depois usufruir da aposentadoria plena por mais 30. A conta não fecha.   

Vocês falam muito de vencer o desafio da “armadilha da renda média”. O que é essa armadilha?

Giambiagi: Muitos países, na história do capitalismo dos últimos 250 anos, conseguiram vencer o desafio de deixar para trás a extrema pobreza, e o Brasil é um deles. Porém, foram poucos os que, depois de ter dado esse salto da pobreza para a renda média, deram o segundo salto e se tornaram países desenvolvidos. No pós-guerra, o caso mais evidente é o da Coreia do Sul, mas dá para contar nos dedos da mão os casos de sucesso. Aqui na América do Sul, só o Chile está a caminho disso: ainda não chegou lá, mas está perto. No livro, temos um capítulo que trata especificamente disso e eu diria que foi um dos capítulos ao qual dedicamos mais empenho.

Não aceito terminar essa entrevista sem uma mensagem de confiança.

Giambiagi: Nosso país anda tão mal que ser otimista chega a ser frívolo ou leviano. Na apresentação, citamos uma frase muito precisa do Washington Olivetto: “o Brasil foi invadido pelo desotimismo”. É verdade. Há pontos, porém, que alimentam a esperança de que o país ainda possa ser salvo. Primeiro, o diagnóstico acerca de nossos problemas está bem mais claro que há alguns anos. Segundo, para além das paixões partidárias, há muito espaço para acordo: se a gente trancar numa sala os assessores dos quatro principais candidatos à luz das pesquisas – Paulo Guedes, Eduardo Giannetti, Mauro Benevides e Pérsio Arida – depois de 4 ou 5 horas de quebra-pau eles podem convergir em 70% ou 80 % dos pontos em discussão. 

A grande maioria do país está cansada do “Fla-Flu” que virou a política nos últimos 15 anos. Fora do inferno do tripé — São Paulo, pela crise; Rio, pela violência; e Brasília, pela intriga política — o país é bem melhor do que essa representação que fazemos dele a partir desse centro. Outro dia fui a um debate onde uma jornalista conhecida falava sobre a crise política e eu sobre as desgraças de nossa economia e ambos levamos um “pito” de um participante do Centro Oeste que nos deu uma bronca dizendo que a gente só falava em crise quando por onde ele viajava pelo interior não via crise nenhuma. Finalmente, temos recursos humanos muito bons. Quando a gente vai dar palestras por aí e depois sai para conversar, percebe-se que há quadros técnicos muito bons nas empresas e mesmo em Governos locais. Eles alimentam minha convicção de que o Brasil poderia ser muito melhor do que é.