Por muito tempo, pessoas próximas de David Chase diziam que ele deveria escrever um roteiro sobre sua mãe, a mulher controladora e instável que dominou sua família. Chase então teve a ideia de fazer não um drama familiar convencional, mas um filme de gângster. Na sua imaginação, Robert De Niro e Anne Bancroft fariam os papeis principais.
Só que um longa-metragem não seria suficiente para contar a história do chefão da Máfia que sofre de depressão e descobre que sua própria mãe conspirou para matá-lo. Chase então adaptou o roteiro, para convertê-lo no episódio piloto de uma série.
Nasceu assim a Família Soprano, que ao longo de seis temporadas, entre 1999 e 2007, elevou os parâmetros da ficção televisiva a alturas nunca antes alcançadas.
Um dos nossos: David Chase e a Família Soprano (Wise Guy: David Chase and The Sopranos), disponível no Max, narra, em dois episódios, a aventura criativa que foi a produção do fenômeno que colocou a HBO na vanguarda da produção televisiva.
O documentário tem dois protagonistas: Chase, o criador e produtor da série, hoje com 79 anos, e Tony Soprano, o anti-heroi interpretado pelo grande James Gandolfini.
Na introdução do documentário, Chase, entrevistado pelo diretor Alex Gibney, fala de sua infância, de seus pais e sua formação. Ilustrando a narrativa, fotos e filmes da família Chase alternam-se com cenas de Família Soprano – um trabalho de edição excepcional, que vai confundindo as vidas de Chase e Tony.
Com esse recurso, Gibney mostra como a série carrega elementos muito pessoais de seu criador. Chase, que não é um homem fácil, protesta: diz que não teria aceitado participar do documentário se soubesse que seria tão centrado em sua vida.
Filhos de famílias ítalo-americanas, Chase e Tony foram criados em Nova Jersey, o cenário da série, e sofreram a chantagem emocional de uma mãe desequilibrada. E os dois chegaram à meia idade em crise com suas respectivas profissões: produtor de TV e chefão do crime.
Chase cursou cinema em Stanford, onde dirigiu um filme que tentava emular Acossado, de Jean-Luc Godard (as cenas que aparecem no documentário são involuntariamente hilárias). Começou sua carreira em uma produtora de filmes B e depois migrou para a TV.
Em 1997, quando apresentou o projeto de Família Soprano à HBO, Chase tinha um currículo respeitável, mas não brilhante. “Era um veterano da TV e havia trabalhado em algumas coisas boas. Mas nunca teve um sucesso com suas próprias criações,” diz no documentário o ex-CEO da HBO, Chris Albrecht.
Naquele tempo, o canal pago tampouco havia se estabelecido como um grande produtor de conteúdo próprio. A HBO estava em busca de inovação e aceitou o risco de bancar uma série que fora recusada por todas as emissoras de sinal aberto.
Foi um acerto: Família Soprano mudou tudo.
As convenções das séries de TV foram subvertidas pela conjunção disruptiva de drama familiar e história policial. Tony Soprano, bom pai de família e criminoso violento, era um personagem que não cabia na tela.
Quase universalmente aplaudida pela crítica já na estreia, Família Soprano tornou-se um fenômeno cultural. Era a série cujos episódios todos viam na noite de estreia para comentar no dia seguinte no trabalho.
Com justiça, a criação de Chase é celebrada como uma das melhores – talvez a melhor – série de todos os tempos. Abriu caminho para outras produções protagonizadas por figuras moralmente dúbias, como The Wire e Breaking Bad, e segue como uma referência incontornável. Não por acaso, a nova sensação da HBO, The Penguin, vem sendo apresentada como um encontro do universo de Batman com o mundo de Tony Soprano.
Com cenas de bastidor e bons depoimentos de roteiristas e atores, Um dos nossos é um presente para os fãs. O primeiro episódio vai da concepção do projeto até a conclusão da temporada de estreia. Gravações da seleção de elenco confirmam o talento de Chase como produtor: cada um dos atores escolhidos parece talhado para o papel.
O segundo episódio acompanha as cinco temporadas seguintes. Ao lado do triunfo incontestável da série, entram os momentos mais sombrios de sua produção.
As altas expectativas criadas pela primeira temporada aumentaram a pressão na sala dos roteiristas, e muitos não aguentaram as exigências caprichosas de Chase. No set, atores viviam sob a incerteza do futuro: em uma série sobre mafiosos, muitos personagens eram implacavelmente executados.
Gandolfini não tinha essa preocupação, mas Tony Soprano lhe cobrou um preço alto. A perversidade do personagem desgastou o ator, que em várias ocasiões faltou às gravações. Também abusava do álcool e das drogas.
O ator morreu em 2013, aos 51 anos, de problemas cardíacos. David Chase foi convidado pela família para falar no funeral, e parte dessa homenagem é exibida em Um dos Nossos.
O produtor lembra a cena da série em que Gandolfini, como Tony Soprano, relaxa no quintal com uma toalha molhada sobre a cabeça, para se proteger do sol. Chase lembra que seu pai, seu avô e seus tios faziam a mesma coisa. E cai no choro.