Tenho a impressão que nenhum produto cultural é tão representativo de seu país quanto William Shakespeare e os Beatles são do Reino Unido. Ao mesmo tempo, nenhum produto cultural é tão longevo ao carregar — ao longo dos séculos, no caso do primeiro, e das décadas, no caso do segundo — tantas simbologias, identidades e tradições da civilização inglesa.

Marcas tão potentes e duradouras despertam sentimentos profundos, como o amor e a devoção, e são objetos das mais diversas pesquisas, teses e teorias.

José Roberto de Castro Neves é um beatlemaníaco e um devoto de Shakespeare, e agora misturou essas duas devoções em “Shakespeare e os Beatles – O Caminho do gênio,” que acaba de sair pela Nova Fronteira (240 páginas, R$ 34,90).

Arrisco dizer, com a liberdade de não ser um crítico literário e com o atrevimento de um arquiteto analisando um reconhecido autor, que poucas vezes vi no universo criativo tamanha curiosidade e verve nas percepções das sincronias e na atenção às entrelinhas.

Advogado brilhante e curioso, Castro Neves é um arqueólogo das coincidências — à maneira de Umberto Eco e Cole Porter. Sua percepção das coincidências entre as obras do Bardo e dos Beatles foi se acumulando ao longo dos anos até que o autor finalmente compreendesse que tinha na cabeça um livro.

O fio condutor é o conceito de genialidade. Quais são as características que fazem do criador um gênio?

Não há dúvidas que ambos quebraram paradigmas, estabeleceram novos modelos e transformaram o mundo através de suas histórias extraordinárias. Mas isso outros gênios fizeram. 

Castro Neves aproxima a sua lupa e revela mais detalhes da analogia entre as duas trajetórias. Por exemplo, a origem humilde e a falta de educação universitária — a ponto de se discutir, quatro séculos depois, por velado preconceito, se o Bardo foi realmente autor de suas obras. (A análise minuciosa de seu amadurecimento profissional não deixa dúvidas que foi.) 

Este amadurecimento também é evidente nos sucessivos lançamentos dos Beatles. Será que daqui a 400 anos questionarão a autoria das músicas de John, Paul, Ringo e George?

Tanto Shakespeare quanto os Beatles também tinham um apurado tino comercial e uma completa compreensão do que hoje é chamado de ‘show business’. Ambos se adequaram ao sistema para transformá-lo de dentro. Nunca foram rebeldes como um Christopher Marlowe ou os Stones, para ficarmos entre seus contemporâneos e diretos concorrentes. 

Falavam de temas universais, atemporais, sentimentos eternos. Sensivelmente fugiram das armadilhas que poderiam ancorar suas obras a determinada época. Compreenderam a civilização e os sentimentos humanos. Fizeram-se longevos. Mantêm-se atuais. E souberam parar. 

Sua genialidade os fez pressentir o fim de suas jornadas, e os términos se deram no auge. O autor esmiúça os detalhes de seus testamentos artísticos que podem ser resumidos no discurso de Próspero em ‘A Tempestade’ — “Nossa festa acabou…” — ou na última música gravada pelos Beatles, ‘The End’, no álbum Abbey Road: “And in the end/ The love you take/ Is equal to/ The love you make.”

Mas além de tudo isso este livro nos propõe uma deliciosa viagem ao costurar as duas trajetórias com a linha da curiosidade, como a influência da atriz shakespeariana que Paul McCartney namorou e que o levou a compor ‘Yesterday’ com citações a Macbeth, a influência surrealista de ‘Sonhos de Uma Noite de Verão’ em ‘A Hard Day’s Night’ ou a relação psicodélica entre ‘Yellow Submarine’ e Antônio e Cleópatra.

O profundo conhecimento de Castro Neves o credencia para o divertido exercício de embaralhar as obras ao ponto de identificar solilóquios e monólogos de Shakespeare que fariam bonito se gravados, como música, no estúdio de Abbey Road, ou de sugerir que Julieta, na mais famosa sacada de Verona, declamasse ao seu amado: “All my lovin’, I will send to you. All my lovin’, darlin’, I’ll be true”. Ou a Ofelia que recitasse os versos de ‘What Goes On Your Heart’ ao melancólico Hamlet. Ou ainda, misturar textos ao propor um adendo à mais famosa citação de ‘O Mercador de Veneza’:  “All that glitters is not gold. Money can’t buy me love.”

Seja para os fãs e iniciados ou para os que não conhecem a fundo a obra de Shakespeare ou a dos Beatles, o texto é uma encantadora oportunidade de se aprofundar. Mais do que uma tese, o livro é uma primorosa declaração de amor como tantas outras que Castro Neves já fez ao Direito, às artes, e ao gigante imortal de Stratford-upon-Avon.

Miguel Pinto Guimarães é arquiteto.