NOVA YORK – Por mais apressado que você passe pelo metrô desta cidade, é impossível passar batido pelo vozeirão de gospel e blues que, quando você tem sorte, está tomando conta da sua estação.

Ali num canto qualquer, esbanjando talento e carisma, está Azusa Dance, uma mulher preta de 1,73 de altura, cantando Midnight Train to Georgia, um clássico do soul.

Vestida de rosa – literalmente da cabeça aos pés – e usando um brinco gigantesco, a cantora, que performa como Sheshe (fala-se: CHÍchi), deseja aos transeuntes boa viagem e recomenda a todos, “take care of each other”.

ShesheMas esse ‘produto’ já tão integrado à cena novaiorquina é, na verdade, uma filha de Chattanooga, Tennessee, detalhe que talvez explique sua simpatia.

“Todos me perguntam: você não é de Nova York, é?”, ela disse ao Brazil Journal.  Mais meia hora de conversa e já somos íntimas; ela me conta que seu guarda-roupa é inteiro rosa, bem como tudo dentro de seu apartamento.

Desde 2016, quando aportou em Manhattan, Sheshe faz parte do programa Music Under New York, criado em meados da década de 80 e que hoje coordena 350 artistas por 40 estações.

Trata-se de um quebra-cabeça que agenda anualmente 12 mil shows subterrâneos, incluindo bandas de rock, flauta andina, cello celtico e música a cappella. Uma vez dentro do sistema, os artistas não precisam renovar contratos. Basta responder aos emails que a administração do metrô envia quinzenalmente, indicando suas disponibilidades.

Cada um recebe uma grade: normalmente duas vezes por semana, três horas seguidas, em diferentes estações. Os artistas ganham um cartaz de tecido com a logomarca do metrô – o que os diferencia dos músicos que tocam em outros cantos da estação sem autorização formal.

Ver Shehe é pura sorte porque, por questão de segurança, a grade não é divulgada ao público. Mas as chances aumentam para quem passar entre 15hs e 18hs nas estações de Union Square, Columbus Circle, Herald Square ou Times Square.

Ela canta somente o que gosta (e não para agradar aos outros), sabe suas músicas de cor e, quando começa, não faz intervalos. Sheshe chega no local de metrô, carregando uma mochila obviamente rosa, uma caixa de som, um tapete (também rosa) e mais alguns apetrechos.

A artista vive no Bronx e, em agosto passado, finalmente conseguiu alugar um apartamento sozinha; até então, ocupava um quarto numa residência de terceiros.

“Sempre me dou um tapinha nas costas, porque há músicos que não duram três meses nesta vida,” diz ela. “Ando na rua me beliscando. Não preciso trabalhar em cinco empregos, nem no mundo corporativo.”

“O metrô é a vitrine para o meu trabalho. Não faço isso pelas gorjetas. A exposição me abre portas para outras oportunidades”, diz a cantora, que já se apresentou até no celebrado Apollo Theatre. “Transmito meu prazer em cantar para as pessoas. Mesmo se alguém passar por mim por um segundo e sorrir, esquecendo a loucura que está passando na vida, para mim já valeu.”

Mãe de dois filhos, hoje com 33 e 29 anos, ambos já com um diploma universitário, Sheshe fez uma longa carreira como funcionária pública no Department of Corrections de Chattanooga, aquele que cuida das prisões e dos detentos.

Ela cresceu cantando, mas no chuveiro.

“Quando criança, eu sentava entre a minha mãe e a minha avó na Igreja Metodista Africana e imitava o coro. Eu não tinha babá, então onde mais eu poderia estar?”, ela reflete depois de uma tarde no microfone. “Durante a adolescência,  tínhamos uns 45 discos em casa, incluindo os do Michael Jackson. Eu fazia tudo para não arranhá-los, porque a gente pulava em casa e a vitrola vibrava. Mas eu nunca pensei que poderia viver disso.”

Seus filhos, que frequentavam uma escola de artes performáticas, certa vez queriam que ela participasse de uma audição para Hairspray no teatro comunitário da cidade.

“Eu era mãe, levava e buscava, nunca me passou pela cabeça participar de musical. Mas quando vi a Queen Latifah na versão filme, resolvi tentar.”  Esse foi o começo de uma jornada que inclui outros musicais e um público cativo que dizia para ela: “You’re New York material.”

Com os filhos crescidos e uma tia morando em Nova York na época, Sheshe resolveu encarar a cidade e contratou um agente. E foi assim que surgiu a ideia de apostar no metrô, competindo com milhares de outros talentos que tentam a sorte ali. Na época, os músicos enviavam CDs aos curadores e iam se apresentar pessoalmente. Hoje, é tudo feito digitalmente.

Enquanto canta, Sheshe faz uma reverência para agradecer as gorjetas deixadas na cesta. Alguns preferem dar o dinheiro em mãos, outros, pelo app Venmo. (O QR code fica na parede.)

Antes da pandemia, as gorjetas acumuladas em nove horas de música – três dias tocando – somavam quatro dígitos para Sheshe. Mas a covid derrubou o tráfego no metrô, e hoje ela fica feliz quando faz US$ 400 em três horas. (As coisas agora estão voltando ao normal: em 17 de maio, o metrô de NY recebeu quatro milhões de passageiros, voltando ao nível pré-covid.)

Já houve dias épicos. Numa véspera de Natal na Herald Square, uma estação formigueiro encravada no centro da cidade, foram US$ 3.500 em três horas de cantoria.

Durante a pandemia, Sheshe ficou trancafiada no quarto que alugava. Temia pegar a doença e mais ainda voltar para o Tennessee. Sua conta bancária murchava. Até que um dia, o dinheiro começou a chegar via Venmo, enviado por estranhos, gente que já tinha dado gorjetas no passado e se lembrou dela. Esses gestos de empatia a salvaram.

Além disso, na Herald Square, ela tem um fã de carteirinha. Ele sempre acena ou deixa uma gorjeta. Mas num dia quente de verão, onde qualquer estação de metrô vira um inferno terrestre, ele foi além: saiu da estação, comprou uma bebida refrescante no Starbucks, e voltou para o metrô para lhe entregar, antes de seguir para o trabalho.

Sheshe tem esse efeito em muita gente.

 

Foto: Hiroko Masuike/The New York Times