“Os convidados chegam antes do jantar e só entram após passar pelos seguranças, que mandam embora quem não está na lista. Às vezes há algum serviço de buffet, mas nas festas mais íntimas, os convidados cozinham juntos (…). O álcool rega as conversas, até que, no final, as drogas são liberadas. Alguma forma de MDMA (ecstasy ou Molly), conhecido por transformar estranhos em amigos extremamente afetuosos, é regra. (…)

Assim que a dopamina dispara, as conexões surgem. As pessoas começam a se abraçar e se pegar. Não se trata de uma orgia propriamente, mas os convidados acabam em ménages à trois (ou à quatre, ou à cinq). Eles podem preferir a privacidade de um quarto ou fazer ali mesmo, na frente dos outros. A noite vira dia, o grupo se reúne novamente para o café da manhã, depois do qual pode haver relações sexuais novamente. Comer, se drogar, transar, repetir.” 

A cena parece extraída de “De Olhos Bem Fechados”, o filme de Stanley Kubrick que retrata um clube sexual secreto. Mas é a mais pura realidade no Vale do Silício – e os participantes são grandes investidores de venture capital, fundadores de startups conhecidas e executivos das principais empresas de tecnologia.

O relato é de Emily Chang, repórter e âncora da Bloomberg TV e um insider do Vale. Ela descreve o comportamento íntimo dos empresários e investidores em seu livro “Brotopia: Breaking Up The Boys’ Club of Silicon Valley”, que será lançado nos Estados Unidos no dia 6 de fevereiro.

Trechos do livro, publicados na edição deste mês da Vanity Fair, mostram por que ele é bombástico. 

Numa época em que o escândalo Harvey Weinstein abriu a caixa de Pandora sobre o assédio sistemático de executivos e celebridades americanas, “Brotopia” vai além da fofoca para expor um retrato cruel das relações de poder no Vale do Silício.  A meca da inovação, que se vangloria de sua cultura progressista, disruptiva e moderna,  aparece como um lugar misógino que no dia a dia replica (e até extrapola) os piores costumes já naturalizados na velha economia. 

O livro mostra que, mais que uma exceção, as festas kubrickianas – ou e-parties, como costumam ser chamadas no Vale – são praticamente um lifestyle entres os poderosos do mundo tech. Em algumas delas, em mansões de gente muito conhecida, os comprimidos de ecstasy vêm no formato dos logos das grandes empresas do setor. 

Emily reconstituiu a cena com base em depoimentos de dezenas de fontes – a grande maioria anônimas – que são habitués nas festas.  A apuração rende uma lista de relatos pitorescos e apimentados. 

Nma e-party com o tema ‘festa na selva’, um investidor vestido de coelho transa com outra mulher (com o consentimento da esposa). O chão de toda a casa tinha sido cuidadosamente coberto por um tapete branco de pelúcia para que convidados pudessem se deitar em qualquer lugar do recinto. Há ainda encontros constrangedores, em que a assistente de um grande executivo esbarra com o chefe sem querer numa festa sadomasoquista.

A maior parte dos entrevistados (homens) se vangloria de participar das festas, dizendo que se trata de uma cultura mais aberta em relação ao sexo. “[Os participantes] falam com orgulho sobre como eles estão subvertendo tradições e paradigmas em suas vidas privadas, da mesma forma que eles fazem no mundo da tecnologia em que eles ditam as regras”, diz Emily.

Mas em vez de um comportamento disruptivo, Emily vê as e-parties mais próximas do playbook de Hugh Hefner do que de um millenial que quer mudar o mundo.

Normalmente, a proporção entre mulheres e homens é de 2 para 1. Outra regra implícita: nada de relacionamentos homossexuais. Os homens só são convidados se forem muito poderosos e podem levar quantas mulheres quiserem. Já as mulheres normalmente têm outras qualificações – e só podem levar amigas do mesmo sexo. “Se você é atraente, está a fim, e (normalmente) é jovem, não precisa se preocupar com seu currículo ou conta bancária,” escreve a autora.

“Você sabe quando é aquele tipo de festa,” disse um investidor à jornalista. “Em festas normais de tecnologia, praticamente não há mulheres. Em festas como essa, há toneladas delas.”

Uma das poucas entrevistadas que fala on the record, a empreendedora Esther Crawford admite sem constrangimento participar de algumas festas. Ela está há quatro anos num relacionamento aberto com o co-fundador do Twitter e fundador do Blogger, Evan Williams.

Mas, no caso das mulheres, a liberdade sexual não vem sem preço. Esther conta que foi a um jantar de negócios com um investidor-anjo para ‘vender’ sua segunda startup, um app de social media chamado GLmps. Assim que terminaram de comer, ele fez um cheque de US$ 20 mil e tentou beijá-la – ainda que não houvesse nada se insinuante na conversa que mantiveram. “Crawford diz que é possível que esse investidor em particular soubesse sobre sua abertura em relação a assuntos sexuais e achou difícil pensar nela apenas como uma empreendedora, em vez de uma possível transa”, escreve Emily. 

Um dos entrevistados – que aparece com o pseudônimo de “VC Casado” – admite que não contrataria ou investiria na empresa das mulheres que encontra nessas festas, ainda que os negócios entre os ‘bros’, que transam lado a lado, sejam regra e não exceção.

Buscando a origem da misoginia no Vale, Emily constata que boa parte dos multimilionários de hoje eram ‘nerds’ completamente ignorados pelas mulheres durante a adolescência e que, com frequência, perderam a virgindade depois dos 20 anos.

Mas com o dinheiro e a fama, vem também a paranoia: o fantasma da mulher ‘interesseira’ os assombra noite e dia. Há até um nome para elas no Vale do Silício: founder hounders, ou ‘cães de caça’ farejando fundadores de startups.

O problema é que, no Vale, o que acontece em Vegas não fica em Vegas. 

Para a autora, a percepção das mulheres como objeto, cristalizada nas e-parties, acaba afetando a imagem dentro do escritório e dificultando a vida das mulheres que trabalham com tecnologia, criando um terreno fértil para casos de assédio e descrédito à capacidade intelectual feminina. 

Apenas 15,8% das startups globais cadastradas no Crunchbase tem uma mulher entre os fundadores.  Só 7% dos sócios das 100 principais firmas de VC são mulheres, e entre os cargos executivos no Vale do Silício, elas são apenas 11%. No Google, apenas uma de cada cinco posições de engenharia é ocupada por uma mulher.