Henry Kissinger fez 100 anos ontem.
Estrategista que definiu a política externa dos Estados Unidos em momentos cruciais da Guerra Fria e se consagrou como o mais influente secretário de Estado do país, Kissinger falou recentemente a The Economist sobre as possibilidades de uso militar da inteligência artificial em um futuro próximo – um tema que ainda pretende explorar num livro – e sobre a crescente tensão entre China e Estados Unidos.
São temas que já se anunciavam quando Kissinger escreveu Liderança – Seis Estudos sobre Estratégia (tradução de Cássio Arantes Leite; Objetiva; 544 páginas), lançado no ano passado e que chega agora ao Brasil.
No livro, Kissinger busca destilar as qualidades que fazem um grande líder a partir de perfis de seis figuras históricas que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer (1876-1967), primeiro chanceler da Alemanha Ocidental no pós-guerra; Charles DeGaulle (1890-1970), o general que encarnou o espírito da França quando o país foi invadido por Hitler e depois da guerra inaugurou a Quinta República francesa; Richard Nixon (1913-1994), o presidente que reabriu a comunicação com a China e arquitetou a retirada do Vietnã; Anwar Sadat (1918-1981), o egípcio que negociou uma difícil paz com Israel e acabou assassinado por isso; Lee Kuan Yew (1923-2015), o primeiro-ministro que converteu Singapura em uma potência econômica, e Margaret Thatcher (1925-2013), a Dama de Ferro responsável por ambiciosas reformas liberais no Reino Unido.
Pensar fora do consenso de seu tempo é uma lição comum de todos esses personagens. A controvérsia cerca a maioria deles – mas o mesmo se pode dizer do autor.
Embora tenha construído uma brilhante carreira acadêmica em Harvard, Kissinger, judeu alemão cuja família foi para os Estados Unidos fugindo do nazismo, não escreve do alto da cátedra universitária, mas do chão duro e sujo da política internacional.
Os perfis que Kissinger traça dos seis líderes vão ao cerne do pensamento e da ação pública de cada um. E ainda oferecem um vislumbre desses poderosos em ação. Kissinger conta, por exemplo, que certa vez ficou surpreso ao ver Adenauer tratar cordialmente um político que lhe atacara publicamente. O primeiro-ministro alemão explicou suas razões: “Meu caro professor, na política é importante retaliar a sangue frio.”
Mestre da realpolitik, Kissinger acredita que o líder deve se orientar por princípios firmes, mas saber adaptá-los às circunstâncias. (Ele só não esclarece quando os princípios morais podem ser dobrados e contornados.)
Mesmo em situações nas quais não está diretamente implicado, Kissinger tende a racionalizar ou amenizar as faltas de quem admira. Admite, por exemplo, que o governo de Kuan Yew em Singapura não foi democrático – mas argumenta que a democracia, ao contrário do que dizem os americanos, talvez não sirva para todos os países do mundo.
Na entrevista à The Economist, ele sugere que as atuais tensões entre Estados Unidos e China são em parte determinadas por preconceitos desse gênero. Kissinger aprendeu a admirar a China: foi ele quem armou, em uma viagem secreta a Beijing, o encontro entre Nixon e Mao Tse-Tung em 1972.
Os seis líderes destacados no livro, observa o autor, são todos frutos da meritocracia: vieram das classes médias, e não das elites aristocráticas que até o século XIX forneciam os quadros para preencher postos mais elevados no serviço público. Segundo ele, as condições que levaram à valorização desse perfil de estadista estariam se erodindo, por uma série de razões culturais. A leitura aprofundada, parte da formação do estadista clássico, desvalorizou-se em uma era de redes sociais que propiciam “uma política mais populista”.
Esse receio pelo futuro da liderança, porém, não se reverte em pessimismo ou amargura. Sempre o realista, Kissinger não vê a história nem como um pesadelo irredimível, nem como uma estrada reta que conduz à democracia liberal.
No livro, quem melhor define a ambiguidade da História é Anwar Sadat. Em uma das passagens de Kissinger pelo Cairo, o surpreendentemente filosófico presidente egípcio sugeriu que ele visitasse Luxor, com seus templos do Egito antigo, para “vivenciar a grandiosidade da História”. Depois de uma longa pausa, Sadat acrescentou: “assim como sua fragilidade.”