Um acidente doméstico abreviou a carreira do ditador que por mais tempo deteve o poder em um país europeu. Em agosto de 1968, António de Oliveira Salazar preparava-se para ser atendido por um calista – sempre sofreu de dores nos pés – quando a cadeira de pano na qual se sentava rompeu-se.
O homem que mandava em Portugal desde 1932 foi ao chão, batendo a cabeça com violência. Recusou socorro imediato, mas, um mês depois, teve de passar por uma cirurgia para aliviar a pressão causada por um edema cerebral.
Recuperou-se, mas, debilitado e com os movimentos comprometidos, não tinha mais condições de governar.
Nesse ponto, começa o episódio mais estranho de sua biografia: iludido por ministros e assistentes, Salazar passou os dois últimos anos de vida pensando que ainda governava Portugal.
A queda fatal do ditador já foi tema de um conto de José Saramago, A Cadeira. E constitui a linha mestra do excelente A Incrível História de António Salazar, o Ditador que Morreu Duas Vezes (tradução de Vasco Gato; Todavia; 208 páginas), do jornalista e escritor italiano Marco Ferrari.
Ferrari – que teve seu primeiro contato com Portugal quando cobriu a Revolução dos Cravos, em 1974 – não escreveu propriamente uma biografia de Salazar, mas um ensaio histórico sobre o ditador e seu tempo.
O livro é um milagre de concisão, examinando em duzentas páginas os mais variados aspectos do regime autoritário que se intitulou de Estado Novo e a personalidade do homem que o comandava.
Salazar nasceu em 1889 na pequena aldeia de Vimieiro, onde seria sepultado em 1970. Foi seminarista mas não se ordenou padre. Tornou-se professor de economia em Coimbra. Chegou a ministro das Finanças em 1928 e desse posto alçou-se a presidente do Conselho de Ministros (cargo equivalente ao de primeiro-ministro) quatro anos depois.
Fernando Pessoa dizia que Salazar era “o produto de uma fusão de estreitezas”: a infância no campo, a formação no seminário e a educação livresca mas pouco humanista de Coimbra. Nos passos do grande poeta, Ferrari associa a origem rural do ditador ao paradoxo que ele representou na história portuguesa: um governante provinciano à frente de um império colonial.
Homem de hábitos modestos, Salazar conduziu a economia de forma responsável mas retrógrada, com ênfase na produção agrária. Empreendeu um grande esforço militar para conservar as colônias na África e na Ásia. No exercício da repressão, praticava um sinistro micromanagement: estudava as fichas de todos os opositores perseguidos, encarcerados e torturados pelo PIDE, sua polícia política.
Muito se discute o quanto Salazar se enquadra na onda fascista que varria a Europa quando ele subiu ao poder. Ferrari nota que o déspota português afastava-se de Mussolini em pontos fundamentais da doutrina fascista: era avesso ao populismo e ao “diálogo direto com as massas”.
Tampouco nutria ambições expansionistas, pois “já tinha um imenso império a preservar”. Ferrari considera que, do modelo italiano, Salazar “só” adotou o partido único – a União Nacional – a censura, a saudação romana e a economia corporativa (na qual associações empresariais e sindicatos se submetem ao controle do Estado, com base na ideia de que a sociedade deve funcionar como um corpo único).
Quando o presidente Américo Tomás anunciou, no final de setembro de 1968, que Marcelo Caetano seria o novo presidente do Conselho de Ministros, Salazar ainda estava no hospital, em coma. Só teria alta em fevereiro do ano seguinte, quando teve início a farsa montada para preservá-lo da verdade.
Chegaram ao cúmulo de produzir um exemplar único do Diário de Lisboa para leitura do inválido. Os encontros com figurões da política que Salazar mantinha em seu isolamento no Palácio de São Bento ganhavam a primeira página, e todas as notícias sobre Marcelo Caetano eram expurgadas.
Ainda em 1969, um jornalista francês entrevistou Salazar em São Bento. O ex-ditador seguia atento à política internacional. Comentou, por exemplo, a saída de De Gaulle do governo da França. Mas nada sabia do próprio país. Disse que Marcelo Caetano, seu sucessor, já havia sido ministro mas não fazia mais parte do governo.
Colocar a encenação montada em São Bento no centro de seu livro é o grande achado de Marco Ferrari. O escritor italiano sublinhou um fato incontornável sobre as ditaduras: elas só conseguem se sustentar sobre mentiras – que às vezes enredam o próprio ditador.