Roberto Abdenur tem uma visão privilegiada sobre a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China e seus estilhaços sobre o Brasil. 

11089 6dc86cb8 ec56 85a3 80d6 0d98dd5514cdNosso ex-embaixador em Washington, Pequim e Berlim diz que o alinhamento excessivo do Governo Bolsonaro com Donald Trump tem desgastado o País não somente com a China, mas também com o Partido Democrata num momento em que Joe Biden lidera as pesquisas com 15 pontos de margem a 100 dias da eleição. 

O diplomata também afirma que o descaso de Bolsonaro com as queimadas na Amazônia e rusgas pessoais com Angela Merkel e Emmanuel Macron dificultam os investimentos das principais economias europeias no País.

Na opinião de Abdenur, o Brasil deveria permitir a participação da Huawei na concorrência do 5G e manter equidistância na briga entre EUA e China. Essa posição, diz ele, favoreceria as empresas brasileiras nos dois maiores mercados mundiais.

“O Brasil hoje só tem como amigos três países e meio: Israel, Hungria, Polônia e a metade trumpista dos Estados Unidos. Porque os democratas têm uma visão muito negativa do Brasil também,” diz o embaixador.

Abaixo, trechos da conversa de Abdenur com o Brazil Journal.

Como a guerra comercial entre Estados Unidos e China, que se acirra a cada semana, afeta o Brasil?

Veja que interessante a mudança de postura dos Estados Unidos em relação à China. Do apoio até muito positivo à entrada da China na OMC [em 2001], e do impulso à globalização, com a criação de cadeias internacionais de produção, agora os Estados Unidos sob Trump investem duramente, atacam duramente a China. Estão numa ofensiva muito dura na qual o confronto comercial é apenas um dos aspectos. São três campos de confrontação dos Estados Unidos com a China. Primeiro, no plano comercial da guerra lançada pelo Trump. No segundo, no plano militar. A China ainda não é propriamente uma superpotência militar, como foi a União Soviética, mas é um poder militar capaz de desafiar hoje os Estados Unidos no Pacífico.

O terceiro aspecto é a luta pela supremacia tecnológica. Aí entra a investida do governo Trump contra a gigantesca Huawei, que é líder do 5G. Veja você que curioso, duas situações em que os Estados Unidos estão em condição de inferioridade tecnológica em relação à China. No 5G, pois os Estados Unidos não têm nenhuma grande empresa capaz de oferecer essa tecnologia ao mercado hoje. As alternativas à Huawei são a Ericsson, Sueca, e a Nokia, finlandesa. E estamos vendo agora como a China prevalece no desenvolvimento de vacinas contra o Covid-19.

Mas essa ofensiva gera um custo para a imagem da China, leva a reações de outros países, não?

Sim. O Deng Xiaoping tinha uma frase muito sábia. Ele dizia que a China deveria ocultar seu poder para ganhar tempo. Com Xi Jiping a China se lançou numa agressiva projeção externa. A nova rota da seda é outra área em que os Estados Unidos estão inferiorizados, pois não têm cacife econômico e financeiro para competir com a China na nova rota da seda. Agora, a imagem da China aos olhos da população americana e também na Europa e em outros países está se tornando muito negativa com essa agressividade política e diplomática.

Veja como as embaixadas chinesas estão reagindo em termos muito exagerados, muito duros. Termos que não consentâneos à prática diplomática. E isso naturalmente está causando desgastes na imagem da China mundo afora. Xi Jinping proclamou uma nova etapa na história da China. Ao contrário do Deng Xiaoping, é uma China na ofensiva, econômica, militar e tecnológica. Os americanos estão fazendo muita propaganda contra a iniciativa da rota da seda, dizendo que os países devem ter cuidado, pois podem cair nos braços da China, tornando-se muito dependente da China.

E como fica o Brasil no meio dessa guerra?

Como ex-embaixador nos Estados Unidos e na China, eu valorizo muito a relação com ambos. Eu acho positivo que haja novos impulsos na relação Brasília-Washington. Agora, desde os primeiros dias do governo Bolsonaro tenho criticado o excesso de aproximação com os Estados Unidos. E não apenas com os Estados Unidos, mas com o Trump pessoalmente. O Bolsonaro se colocou numa posição de inferioridade em relação ao Trump, dizendo que o admira, seguindo os exemplos do Trump. Por extensão, ele colocou o Brasil numa posição de subserviência, de inferioridade em relação aos Estados Unidos. E isso é uma distorção muito grave na nossa política externa. Nós passamos a adotar como nossas posições que são do interesse próprio dos Estados Unidos, que não refletem o interesse do Brasil. Dias atrás, houve algo que eu vi com extrema preocupação, que foi o Brasil juntamente com os Estados Unidos fazer uma proposta na OMC contra a China.

Falando na China, o senhor também vê com preocupação os altos investimentos chineses na área de infraestrutura brasileira, como nas privatizações que estão por vir no setor elétrico, considerado estratégico?

Eu reconheço a validade de algum cuidado com isso, mas não chego ao ponto de dizer para fecharmos as portas aos investimentos chineses. Nosso sistema de telecomunicações, nosso sistema elétrico, na área de petróleo e gás, estão presentes investimentos chineses, mas também da Alemanha, da França, da Itália, da Espanha, além dos americanos. Por causa da política negacionista do governo Bolsonaro na área ambiental está se desenvolvendo na Europa uma fortíssima onda crítica ao Brasil.

A imagem do governo e a imagem pessoal do Bolsonaro são horríveis na Europa. Assim, estão surgindo questionamentos ao acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Embora seja um acordo de comércio, ele envolve muitos outros componentes que estimulam o investimento europeu no Brasil. Na medida em que o acordo não seja adjudicado pelo lado europeu, isso será um prejuízo ao Brasil.

O que me preocupa é a imagem do Brasil hoje no exterior. Eu digo que o Brasil hoje só tem como amigos três países e meio: Israel, Hungria, Polônia e a metade trumpista dos Estados Unidos. Porque os democratas têm uma visão muito negativa do Brasil também. Com a provável eleição do Biden, nossa relação com os Estados Unidos vai se complicar muito. A única linha de ação do governo Trump que terá continuidade num governo Biden será justamente a ofensiva contra a China. E dentro disso, a continuação de pressões sobre o Brasil contra a Huawei.

Se ficasse neutro, o Brasil poderia se beneficiar desse confronto entre as duas potências? Não poderia vender mais para os dois?

Essa vinculação excessiva aos Estados Unidos do Trump é muito prejudicial ao Brasil. E será ainda mais prejudicial se o Brasil ceder às pressões contra a Huawei. Mas não acho que se trate de o Brasil jogar um contra o outro. Não é isso. É uma questão de equidistância. Nós não temos que nos alinhar com a China contra quem quer que seja nem com os Estados Unidos contra a China. Não se trata de o Brasil dividir para reinar.

A pergunta é exatamente nesse sentido. Se o Brasil não ganharia mais mantendo sua autonomia e equidistância entre os dois.

A China ainda está amarrada a esse primeiro entendimento comercial feito com o Trump. Entendimento que mantém tarifas altas sobre US$ 200 bilhões das exportações da China para os Estados Unidos. Mas a China se comprometeu a comprar mais produtos do agribusiness americano. Brasil e Estados Unidos são competidores no agribusiness, em matéria de soja, de carnes, de açucares, algodão, entre outras coisas. A China até agora não aumentou muito a compra de produtos americanos, até porque, devido à pandemia, a economia chinesa levou um baque duríssimo.

Se a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China se agravar, o que é provável, é possível que a China direcione a compra de certos produtos para cá, como carne, soja e açúcar.

E alinhamento excessivo aos Estados Unidos de Trump prejudica as exportações brasileiras, na medida em que não é possível prever os desdobramentos dessa guerra comercial?

A indústria brasileira e a nossa infraestrutura estão sendo e serão prejudicadas pela reação negativa na Europa ao acordo Mercosul-União Europeia. Menos investimentos virão. Não são os governos europeus que orientam ou lideram movimentos contra o Brasil. Os movimentos são espontâneos, das finanças, da economia, do comércio, dos investimentos, críticos ao Brasil. Isso justamente quando mais desesperadamente nós precisamos de investimento de todo mundo, da China, mas também dos Estados Unidos e muito da Europa.

Há dois fatores que nos prejudicam nas relações com a Europa: o alinhamento com os Estados Unidos de Trump e a péssima imagem nas questões ambientais. E cai muito, muito mal junto à outra metade dos Estados Unidos. Por isso que eu digo que o Brasil tem hoje somente três países e meio como amigos. Hungria e Polônia, regimes autoritários. Estão praticamente deixando de ser democracias. Israel com um governo de extrema direita. E a parte trumpista dos Estados. O Brasil vai pagar um preço muito alto. 

Se o Biden for eleito, o Brasil vai levar muita pancada. E ao que tudo indica, os democratas manterão o controle da Câmara. E há uma chance de que adquiram o controle do Senado. E o Congresso americano é muito poderoso na área de comércio, na área de finanças, de direitos humanos, de tudo relacionado a assuntos internacionais.

Ou seja, o governo Bolsonaro pode conseguir a façanha, histórica, de deixar o Brasil mal com os Estados Unidos e a China ao mesmo tempo?

E com a Europa! Veja bem, nossas relações com a França e com a Alemanha foram seriamente danificadas. O Bolsonaro atacou pessoalmente a Angela Merkel e o Macron, os dois principais líderes das duas grandes democracias na Europa. Na Europa, o Brasil só tem diálogo positivo com a Hungria e a Polônia. E qual o conteúdo econômico, comercial, cultural, financeiro, tecnológico da nossa relação com a Hungria e a Polônia? Zero. São relacionamentos diplomáticos corretos, mas vazios de conteúdo. Diferentemente da relação que nós temos com a Alemanha, com a França, com o Reino Unido, com a Suécia, com a Holanda, com a Espanha, com a Itália, com o pequeno Portugal e por aí vai. Os interesses do Brasil já estão seriamente prejudicados com a Europa e podem vir a ser prejudicados com a China também se nós optarmos com um alinhamento continuado com os Estados Unidos.

O governo chinês suspendeu a importação de alguns frigoríficos brasileiros, sob o argumento de combate à Covid-19. E recentemente, o embaixador chinês em Brasília disse que seu país não aceitaria que empresas chinesas fossem retiradas “administrativamente” de concorrências no Brasil. Ele claramente se referia à participação da Huawei no 5G. A China já está mandando recados de retaliação ao Brasil?

Sobre os frigoríficos, eu tendo a uma avaliação otimista de que foi uma ação fitossanitária. Agora, eu também não excluo de todo que seja um primeiro sinal de preocupação. E essas declarações do embaixador chinês não podiam ser mais claras. Ou seja, ele está dizendo que “nós não sejamos discriminados pelo governo brasileiro”.