Em 2007, uma retrospectiva do MoMA intitulada “New Perspectives in Latin American Art” incluía Helio Oiticica, Lygia Clark, Lygia Pape e uma ilustre desconhecida – a artista cubana Carmen Herrera, que acabou sendo o grande frisson da mostra.
Numa prova de que nunca é tarde demais para fazer sucesso, a revelação mais quente do mundo das artes tinha então 92 anos.
Carmen faleceu essa semana – com quase 107 – deixando um legado de elegância e disciplina, e mostrando que o mercado pode ignorar um ‘real talent’ por décadas.
Os maiores jornais do mundo anunciaram a passagem da “artista descoberta aos 89 anos”. Faltou só incluir: revelada graças a um galerista e colecionador brasileiro.
Frederico Sève teve por anos uma galeria de arte em Nova Iorque, a Latin Collector Gallery. Seu irmão, Luiz Sève, é um dos marchands mais conhecidos do país, fundador da tradicional Galeria Ipanema, que atua há 57 anos no mercado brasileiro.
Em 2004, Frederico planejava uma exposição no seu espaço em Tribeca com três artistas latino-americanas. Em cima da hora, uma das pintoras desistiu, e seu amigo e artista Antonio Bechara indicou Carmen para compor o trio.
Séve reagiu com perplexidade: “Mas quem é Carmem Herrera?”, o próprio galerista contou ao Brazil Journal.
Carmen tinha 89 anos e nunca havia vendido uma obra.
Quando os trabalhos chegaram à galeria, Sève achou que se tratava de Lygia Clark. Mas quando checou a data das obras, se surpreendeu: “Uau – temos aqui uma pioneira!”
Convicto de que estava diante de uma grande descoberta – uma das maiores das últimas décadas, segundo o The Observer – Sève mostrou eufórico as obras para Ella Cisneros, a fundadora da Cisneros-Fontanals Art Foundation em Miami, que quis comprar a exposição toda.
Mas como já imaginava o sucesso, Sève resolveu antes falar com Estrellita Brodsky, a poderosa mecenas que patrocina projetos curatoriais na Tate, Metropolitan e no MoMA, e Agnes Gund, a presidente emérita do MoMA. As duas arremataram as outras obras. Agnes, junto com Bechara, doou ao MoMA um quadro preto e branco sem título, de 1952 – que se tornou uma das obras mais icônicas do museu.
Ir do anonimato direto para as coleções das filantropas mais poderosas da arte nos EUA é um êxito e tanto – ainda mais para quem nunca tinha vendido nada. Carmen atribuía a falta de sucesso durante sua vida ao machismo e preconceito contra latinos à época. E, seja por ironia do destino ou justiça do universo, a artista foi alçada ao sucesso mundial por mulheres (em sua maioria latinas).
Com formas geométricas simples e uso limitado de cores, Carmen dizia que nunca encontrou uma linha reta que não gostasse. Em diálogo com artistas de outra geração (como Mondrian) e contemporâneos seus, como Ellsworth Kelly, sua linguagem visual era puramente abstrata.
Carmen rejeitava pintura como uma prática intuitiva – tudo era meticulosamente planejado. Munida de lápis, régua e um caderno quadriculado, estudava a composição de cores, proporção de traços e simulação de medidas para depois replicar na tela. (Talvez tenha ajudado o fato de ter estudado arquitetura em Cuba).
A preparação para sua individual (um recorte de obras de 1948-78) no Whitney, em 2016, foi objeto do documentário “The 100 Years Show”.
De cadeira de rodas, nunca deixou de pintar (e de tomar um drink) diariamente, esbanjando consistência, disciplina e clareza de propósito. Com simplicidade e muito humor, contava que apesar de invisível para o mercado, nunca pensou em parar de pintar. Era sua forma de ordenar o caos da vida.
Foram 70 anos refinando seu estilo, segundo ela “uma vida dedicada ao processo de purificação, tirando o que não é essencial.”
“Fui deixada em paz por décadas para refinar e destilar minha arte. Não tenho arrependimentos.” Até porque Carmen achava que a fama era algo vulgar e pintava compulsivamente por prazer. Quando precisava de uma opinião externa, recorria ao marido, Jesse Loewenthal, seu único apoiador por 60 anos.
Popular alguns anos depois da morte do marido, foi perguntada por um repórter se o marido estava no Céu orquestrando seu sucesso. Ela soltou uma gargalhada e disse “Aham, sim, Jesse nas nuvens. Eu trabalhei muito duro a vida toda. Talvez seja por meu trabalho.” Talvez…