No fim do ano passado, um grupo que vem sendo taxado de “revolucionário” reuniu-se na sede de uma importadora de vinhos na Rua Normandia, no bairro de Moema. Seus membros eram todos franceses, expoentes da produção de Champagne artesanal. 

Apesar de serem jovens e informais, a conversa deixava clara a seriedade com que encaravam sua missão. “Rien de grand ne s’est fait dans le monde sans passion!” (“Nada de grande foi feito no mundo sem paixão!”) foi a primeira frase que ouvi ao pisar ali.

Seguiu-se imediatamente um brinde de Champagne. 

Depois outro. Outro… 

E outro.
 
Assim como as craft beer mudaram o setor de cervejas, os microprodutores de Champagne estão revolucionando uma categoria que opera pela mesma lógica há quase 200 anos, arejando uma indústria glamourosa e elitista que nunca deu espaço para outsiders. 
 
Ao longo dos séculos XIX e XX, a produção e o comércio do famoso vinho espumante francês estiveram nas mãos de negociantes e de multinacionais. 

O mundo consome cerca de 300 milhões de garrafas anualmente, movimentando algo próximo a US$ 6 bilhões. Apenas a Moët & Chandon, uma das marcas do conglomerado de luxo LVMH – que ainda detém a Veuve Clicquot, Krug e Dom Pérignon – despeja mais de 30 milhões de garrafas no mercado todo.

Mas agora, proprietários rurais bem diferentes da elite endinheirada das Grandes Marques começaram a emergir. Hoje, os growers ou vignerons de Champagne – assim chamados por serem donos das suas propriedades e cultivarem suas próprias parreiras, enquanto os grupos internacionais compram uvas de terceiros – são inegavelmente a grande força criativa dessa indústria.
 
Os nomes ainda soam pouco familiares ao grande público, mas o reconhecimento está aumentando: Frederic Savart, Dhondt-Grellet, Pierre Gerbais, Chartogne Taillet, Bereche & Fils, Cédric Bouchard, Jérôme Prévost, Olivier Collin, Emmanuel Lassaigne, Thomas Perseval, Leclerc Briant, Etienne Calsac, Larmandier-Bernier, Egly-Ouriet, Agrapart & Fils e um punhado de outros estão enchendo as taças e fazendo a cabeça de quem aprecia bons vinhos.
 
Tal como ocorre com as cervejas artesanais, seu poder de dominar as conversas dos aficionados e ditar tendências é bem superior ao seu market share. Sua sombra pode ser maior do que seu corpo, mas o movimento não é só espuma. Os artesanais capturaram a narrativa. E, como se sabe, é aí que as guerras são vencidas ou perdidas. Antes de mais nada, os consumidores compram uma boa história.
 
Os rótulos dos microprodutores entraram nas cartas de restaurantes estrelados como El Cellar de Can Roca, noma, Eleven Madison Park e RyuGin, que buscam fugir do óbvio. Os vignerons também conquistaram altas notas dos principais críticos de vinho e tornaram-se objeto de palestras, eventos e degustações de Nova York a Londres, de Paris a Shangai – e São Paulo.
 
Muitos deles representam as novas gerações de antigas famílias de Champagne que optaram por fazer os próprios vinhos ao invés de vender suas uvas. Os growers cultivam com um cuidado obsessivo, praticam a chamada agricultura biodinâmica – uma agricultura orgânica ainda mais radical –, experimentam diferentes técnicas de vinificação, usam leveduras selvagens, fazem fermentação dentro de barris de carvalho e chegam até a misturar “vinho tranquilo” (sem gás) a espumantes já quase prontos.

“Eles estão colocando a região em ebulição”, diz Rodrigo Malizia, sócio da Cellar Vinhos, uma das principais importadoras que está apostando em trazer pequenos produtores de alta qualidade ao Brasil.
 
Todo movimento que se preze tem um pai, e com o Champagne artesanal não é diferente. O pai, no caso, é Anselme Selosse, que se tornou um ídolo cult entre os enófilos. Ainda jovem, Selosse trabalhou na Borgonha e ficou impressionado pela veneração ao terroir – o conjunto de condições únicas como solo, clima e tradições que um local possui e que pode se expressar nos vinhos, tornando-os inimitáveis. Central na Borgonha, esse conceito quase não existia em Champagne. Também estudou os vinhos espanhóis de Jerez, feitos de uma maneira oxidativa, e de Rioja.
 
Nos anos 70, Selosse voltou para a propriedade da família em Avize, no coração de Champagne, e começou a aplicar o que aprendeu aos espumantes. Tornou-se um daqueles raros casos em que, de tempos em tempos, alguém com a força de suas ideias e a qualidade de seu trabalho consegue criar uma nova escola de pensamento.

Fumante de cigarros Lucky Strike, cabelos despenteados, mãos sujas de terra, Selosse se define simplesmente como “um agricultor”. Uma espécie de João Gilberto do vinho, seu objetivo é despir os espumantes de tudo que for acessório e deixar apenas o essencial. No caso, o que está no solo. Para isso, procura reduzir a influência da matéria orgânica na bebida, abrindo espaço para que predominem os aspectos minerais que as parreiras capturam do chão onde são cultivadas.
 
Parece loucura – e talvez seja. Mas o fato é que em 1978, quatro anos após sua primeira safra, as garrafas de Selosse vendiam ao equivalente a US$ 5. Hoje custam centenas de vezes mais. A última edição de seu Grand Cru Blanc de Blancs “Substance” ganhou os cobiçados 100 pontos da publicação Wine Advocate, que não economiza hipérboles e o define como “caleidoscopicamente complexo”.

Desde então, essa cartilha influenciou de maneira decisiva uma nova e apaixonada geração de produtores artesanais de Champagne. “Não queremos algo feito pelo homem, mas feito pela natureza com ajuda do homem”, Alexandre Chartogne, que estagiou com Selosse e cuja família produz vinho desde o século XV, disse ao Brazil Journal

“Fazemos vinhos como na Borgonha. Nosso objetivo é expressar o terroir”, diz Raphael Bereche, outro destaque da nova geração de vignerons.
 
Essa é uma ruptura e tanto numa indústria historicamente bem-sucedida. Sendo por séculos uma bebida criada por negociantes, e não por viticultores, foi inevitável que Champagne valorizasse mais a marca e a padronização do que a terra ou os atributos do campo. O marketing que associou o espumante francês ao luxo, às festas e às conquistas foi um caso precoce – e brilhante – de globalização de um conceito para vender um produto.
 
Champagne foi colocada no centro das celebrações glamourosas. Mas raramente no centro da mesa de refeições – que é o lugar de todos os outros grandes vinhos. “O que os produtores artesanais fizeram foi nos lembrar que Champagne é, antes de mais nada, um vinho”, diz Alaor Pereira Lino, fundador da Anima Vinum, a importadora paulista que abrigou o evento descrito no início desta reportagem. 
 
Com a recente febre dos vignerons, o risco agora é o pêndulo ir muito para o outro lado: assumir que só artesanal é bom e rotular os Champagne das Grandes Maisons como produtos comerciais e desinteressantes. No mundo binário e polarizado em que vivemos, nada mais fácil. E nada mais errado. 
 
Além do mérito de produzir milhões de litros anualmente com ótima consistência em suas linhas de entrada, praticamente todas as grandes casas possuem também alguns rótulos icônicos – os chamados ‘tête de cuvée’ – de qualidade inegável, feitos com esmero por enólogos renomados. Vastas reservas de vinhos antigos e capital de giro para esperar que suas bebidas envelheçam por anos antes de irem a mercado são algumas das vantagens desses conglomerados.

 
“Dom Perignon e Krug podem ser ótimos. Mas agora eles não estão mais sozinhos”, diz Aurélien Gerbais, da Domaine Pierre Gerbais, outro destacado produtor artesanal. “Os pequenos produtores abriram uma nova dimensão em Champagne.”
 
Nem sempre é preciso tomar – ops – uma posição única. Para quem pode bancar, afinal, não há nada errado em beber um Bollinger ou Krug num dia e um Savart, Leclerc Briant ou Larmandier-Bernier no seguinte.
 
Nesta revolução do Champagne não há vencidos, só vencedores. 

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Ricardo Cesar é apreciador de vinhos, fundador e co-CEO do Grupo Ideal, a holding que administra a Ideal H+K Strategies e outras agências de relações públicas.