A estratégia da política externa de Lula é tensionar a relação com os EUA e a Europa e, assim, conquistar concessões dos mais ricos para as nações mais pobres.

“O grande risco disso tudo é que, ao esticar demais a corda, ela pode arrebentar do lado mais fraco – que, no caso, somos nós,” diz o especialista em relações internacionais Matias Spektor, professor da FGV.

Para Spektor, essa política – concebida por Celso Amorim – parte de “uma leitura equivocada a respeito de como funciona o sistema internacional.”

Spektor é o autor do ótimo 18 dias, livro publicado em 2014 que conta os bastidores do trabalho diplomático feito em 2002 para mitigar as desconfianças dos EUA em relação ao PT e conquistar o apoio de George W. Bush ao Governo Lula.

Vinte anos depois, Lula foi recebido em fevereiro de 2023 por Joe Biden “com tapete vermelho” na Casa Branca, mas a relação Brasil-EUA  permanece gélida. O conjunto de declarações de Lula desde a posse – culpando a Ucrânia pela invasão russa, apoiando o ditador Nicolás Maduro, passando pano para Vladimir Putin e, mais recentemene, comparando a ação de Israel em Gaza ao Holocausto – contaminam suas credenciais como líder democrático capaz de fazer a ponte entre o Ocidente e o resto do planeta. 

matias spektor“Lula parece muito mais um justificador de ditaduras,” diz Spektor. 

Na estratégia de Amorim, os BRICS devem ser o bloco de pressão sobre os países ricos. Mas, segundo Spektor, o mundo vê os BRICS cada dia mais como “um projeto chinês para disputar poder com os EUA, não para fazer pontes com os ricos, que é a agenda do Lula.”

Um ponto pouco notado, diz o professor, é que o Governo Biden já disse explicitamente que apoia uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, um pleito histórico de Lula-Amorim. “Quem breca a reforma hoje? A China, que, supostamente, é a nossa principal aliada.”

Spektor é também autor de Kissinger e o Brasil, de 2009, que trouxe novas informações sobre a colaboração dos EUA com a ditadura militar.

Abaixo, a íntegra da conversa.

Há 20 anos, quando Lula assumiu pela primeira vez o governo, o mundo era outro. A China havia acabado de entrar na OMC, os BRICS eram uma invenção de um executivo de um banco de investimentos, havia um ambiente de colaboração internacional após o 11 de setembro. Agora o contexto é de polarização lá fora entre potências e polarização interna. Os países e os políticos são forçados a escolher lados. Como isso impacta a atual política externa brasileira?

Antes havia uma única grande potência, os EUA. O mundo tem hoje três potências: EUA, China e Rússia, que demonstrou ser capaz de impedir que os EUA consigam impor o seu ordenamento na Europa do Leste. 

Essa mudança faz uma enorme diferença. Lá atrás a violência internacional pesada vinha da política externa americana, como foi na invasão do Iraque e do Afeganistão. 

Agora a violência pipoca pelo mundo, tem muitas áreas de tensão entre as potências. São diferenças importantes, mas é importante ressaltar que tanto o Lula de 2003 quanto o Lula de hoje têm uma visão comum e única do que deve ser a estratégia da política externa brasileira.

É a ideia de que o papel do Brasil é organizar coalizões com países em desenvolvimento para aumentar as concessões dos ricos aos pobres. A visão é a mesma, de arrancar concessões do Norte Global para o Sul Global.

No passado isso era feito, por exemplo, construindo uma coalizão para a Rodada Doha com a Índia, construindo uma coalizão na América do Sul para criar o Unasul (União de Nações Sul-Americanas), construindo diálogo com os países africanos, diálogo com os países da Ásia. Mais tarde, formando a coalizão dos BRICS.

A estratégia era ter uma posição de força para obter concessões do Ocidente. Mas para isso, era preciso ter boas relações com o Ocidente. 

Por isso lá atrás o Lula saiu de sua zona de conforto, construindo um laço produtivo de trabalho com líderes com os quais ele não concordava em quase nada, a começar por Bush. 

Como operar essa mesma visão de política externa em um mundo fragmentado?

O Lula escolheu como pedra angular dessa estratégia a dobradinha G20 em 2024 e COP 30 em 2025. Serão dois fóruns nos quais ele vai tentar repetir o que fez lá atrás. 

Algumas das prioridades serão o perdão da dívida dos países mais pobres e o maior financiamento dos ricos aos pobres na transição energética.

Para essa estratégia vingar, Lula precisa se apresentar como um estadista experiente, com reputação para fazer a coalizão com o Sul e a negociação com o Norte – e que seja um líder político com credenciais democráticas impecáveis, algo que o Narendra Modi, da Índia, não tem.

Há um ambiente favorável para isso. O desmatamento na Amazônia diminuiu, a economia brasileira está mais forte do que se imaginava, e o País superou uma tentativa de golpe. 

Com Bolsonaro afastado pelo Supremo, Lula tem uma perspectiva de poder até 2030. Conseguiu trazer o G20 e a COP para cá.

Então, a pergunta que fica é: que diabos Lula está fazendo?  A tática utilizada desde a sua posse não poderia ser pior. A maior ameaça para a sua visão de política externa tem sido a sua própria diplomacia.

Por quê?

Dou vários exemplos. Biden fez de tudo e mais um pouco para apoiar Lula contra Bolsonaro. Quando Lula ganhou, a Casa Branca estendeu um tapete vermelho.

A viagem a Washington, entretanto, acabou sendo uma visita completamente frustrada em função dos comentários de Lula sobre a Ucrânia. Primeiro colocou a culpa no Zelensky, depois colocou a culpa na Ucrânia, que é a vítima. Por fim, colocou a culpa da guerra na OTAN e nos EUA, fechando o diálogo com a Casa Branca.

Hoje em dia, os países mantêm uma relação gelada, como vimos na visita de Antony Blinken (o secretário de Estado dos EUA) na última semana.

Lula fez coisa parecida com os europeus. O Brasil tem dois grandes aliados na Europa: Portugal e Alemanha. Chefes de governo de ambos os lados se sentiram humilhados com as falas do Lula quando o Lula os encontrou.

As falas do Lula sobre Israel reforçam esse ponto, assim como as declarações sobre Alexei Navalny, dando justificativas para Putin. Ou ainda quando ele passa pano para o Maduro, o chefe de uma cleptocracia que expulsou da Venezuela mais de 10% da população.

O Lula do primeiro governo buscava uma maior posição de equilíbrio, e hoje ele pende mais para um lado?

Minha percepção é que ele está esticando a corda. Um projeto interessante, progressista, de emplacar um G20 que seja a consagração do Sul Global, arrancando concessões do Norte, poderá fracassar por causa disso.

É interessante, porque, pela primeira vez, ele está esticando a corda não só com os EUA e a Europa, mas com governos de esquerda na América do Sul. Criou fricções com o Boric, do Chile, e o Petro, da Colômbia. A tentativa de reviver a Unasul não deu em nada. 

Na Argentina, Lula saiu abertamente em campanha pelo governo de situação – e, quando a oposição ganhou, não foi à posse do presidente eleito.

Quando a relação Brasil e Argentina está quebrada, não há a menor chance de o Brasil construir uma diplomacia regional que funcione.

Na Venezuela, Lula incitou Maduro a permanecer no poder e resistir às pressões para liberalizar o regime. 

A ideia de que o Lula é o líder democrático com credenciais impecáveis – que é central para esse projeto dele de ser a ponte entre o Ocidente e o resto do planeta – fica contaminada. Faz Lula parecer muito mais um justificador de ditaduras. 

Essa percepção internacional se consolida em um momento no qual o mundo inteiro vê nos BRICS, a cada dia mais, um instrumento da China.

Por que essa atitude do Lula? Agora, ao contrário do passado, ele não vê mais a necessidade de cultivar o apoio do Ocidente?

O Lula de hoje parece estar mais convicto de que o Ocidente somente faz concessões quando o Sul Global tensiona a corda. Tensionar a corda é essencial, segundo essa visão.

Isso foi muito bem colocado numa entrevista de Celso Amorim ao Valor Econômico. Amorim diz assim: o Ocidente não dava a menor bola para o G20 até aparecerem os BRICS. Na hora que a gente criou os BRICS, o Ocidente se assustou.

Então, a precondição para o Ocidente dar algo aos países em desenvolvimento é ter a ameaça de pressão global via BRICS. Amorim concluiu que os BRICS foram a melhor coisa que aconteceu nos últimos anos e acho que o Lula está convicto dessa leitura da história.

Mas os BRICS hoje não são como há dez anos. O bloco é percebido essencialmente como um projeto chinês para disputar poder com os EUA, não para fazer pontes com os ricos, que é a agenda do Lula.

Essa visão de mundo do governo, oriunda das décadas de 60 e 70, tem Celso Amorim como seu principal expoente no Governo. Amorim tem uma relação umbilical com Lula, construída ao longo de duas décadas.

Nas decisões de política externa, o que Lula ouve é isso. Haddad, Marina Silva, Simone Tebet, que têm pastas com gigantescas repercussões internacionais, não são consultados para as grandes decisões de política externa.

Quando um chefe de governo ouve apenas uma pessoa, um samba de uma nota, ele tende a cometer muito mais erros na política externa. Vozes rivais ajudam o Presidente a calcular riscos e oportunidades. Isso a gente não vê hoje. No primeiro governo, Lula ouvia outras visões.

Como avaliar se o Governo vai alcançar os seus objetivos?

Pessoalmente, acho que os ganhos até agora são parcos.

Sabe o que é interessante? O Governo Biden já disse explicitamente que topa apoiar uma reforma na ONU. Quem breca a reforma hoje? A China – que, supostamente, é a nossa principal aliada. Então a declaração importante a favor da reforma deveria vir dos BRICS. Mas a resistência vem da China.

Por que a China é contra?

Uma reforma do Conselho de Segurança poderia botar para dentro o Japão, por exemplo, e diluir o poder da China.

A Rússia também tem incentivo zero para mexer nisso, não?

Zero.

O grande risco disso tudo é que ao esticar a corda ela arrebente do lado mais fraco – que, no caso, somos nós. 

Essa política parte de uma leitura equivocada do Celso Amorim a respeito de como funciona o sistema internacional. Em função dos comentários do Lula fazendo analogia do que Israel faz em Gaza ao Holocausto, Amorim disse que é uma boa chacoalhada emocional.

Acho que ele está profundamente enganado. É uma leitura equivocada de como funciona o sistema internacional. Não me refiro apenas ao Ocidente, me refiro também ao mundo árabe. Ninguém no mundo árabe fez uma declaração dessa natureza.

Desde a ditadura militar, desde o governo Costa e Silva, em 67, a política do Brasil para o Oriente Médio é o que se chama de equidistância: convocar a solução dos dois estados e manter boas relações com ambos os lados para, quando houver condições de implementar essa solução, o Brasil poder ser ponte.

Quem quebrou essa política pela primeira vez foi o Bolsonaro. Quando assumiu, decidiu quebrar com essa tradição da política externa brasileira, anunciando a promessa de mudar a embaixada do Brasil para Jerusalém, em flagrante violação ao espírito da solução dos dois estados.

Estou totalmente de acordo de que a política de Israel para a Palestina é absolutamente brutal. É desproporcional, viola todas as regras internacionais. É contraproducente, não só para a causa Palestina, mas também para Israel.

Agora, em vez de restaurar o que era um acervo da diplomacia brasileira, o que a gente vê é apenas uma inversão de sinal com Lula.

No melhor dos cenários, qual tipo de concessão o Brasil poderá obter das nações ricas?

Vejo dois pontos para medir o sucesso da política externa.

No G20, o Brasil pode conseguir que na declaração final de sua presidência no grupo, os ricos perdoem dívidas de países pobres e aumentem o financiamento para a transição para a economia verde nos países em desenvolvimento. 

A declaração final poderá trazer uma convocatória do G20, das Nações Unidas, do Banco Mundial e do FMI, aumentando a representação de países em desenvolvimento e ampliando políticas de redução da desigualdade. É uma pauta progressista, que faz sentido o Lula defender. 

As conquistas nesses dois pontos serão a maneira de medir o sucesso do Brasil. Só conheceremos a declaração final em novembro.

No passado, a política externa obteve resultados positivos por meio das coalizões. O Brasil conseguiu abrir mercados, houve aumentos expressivos nas trocas comerciais.

O Brasil liderou a formação da Unasul, com projetos de grandes obras do Brasil na região. O que dinamitou isso foi a corrupção endêmica das construtoras brasileiras, usando o dinheiro público do BNDES em conluios do governo brasileiro com governos estrangeiros.

Quando isso veio à tona, esse projeto brasileiro da Unasul implodiu.

Como reconstruir esse projeto de integração regional?

Seria útil para o Brasil poder reconstruir uma Unasul em novas bases, reconstruir a reputação internacional do BNDES no momento pós-Lava Jato.

Para isso, seria importante conseguir não apenas o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia, mas também construir um projeto de cooperação para eliminar a maior ameaça internacional que o Brasil enfrenta hoje, que não existia lá atrás, mas que existe agora, que é o crime organizado transnacional – sobre o qual você não ouve o governo se manifestar.

O Governo odeia a OTAN, não quer saber de cooperação de segurança com os europeus. Mas, sem cooperação europeia, não tem como o Brasil reverter a situação atual, com o Porto de Santos sendo o maior porto de escoamento das drogas com destino à Europa.

Então, será que você arranca concessões esticando a corda? Ou esticando a corda você quebra a corda e fica com um pedaço menor de corda na mão?

As pesquisas eleitorais nos EUA indicam uma alta probabilidade de vitória de Donald Trump. Como ficaria a política externa brasileira? Há chance de uma surpresa positiva, como foi a boa relação de Lula com George W. Bush?

O melhor cenário para a política externa do Lula é um governo nos EUA sensível à causa dos países em desenvolvimento.

A teoria da política externa do Lula é de formar uma coalizão do Sul para conseguir concessões do Norte. Então, o que acontece se Trump ganhar? Essa teoria vai por água abaixo.

Trump é abertamente hostil a esse processo e, portanto, num cenário em que ele ganhe as eleições, a política externa brasileira precisaria fazer um ajuste de objetivo. Teria que ser feito um ajuste para uma redução de danos. 

Em seu governo, Trump, por exemplo, tentou promover um golpe contra Maduro. Isso é péssimo para o Brasil.

Reduzir danos com Trump é muito difícil para um país como o Brasil. Vejo duas opções. 

Primeira opção: o governo Lula se afasta completamente dos EUA e fica sem instrumento nenhum para fazer redução de danos. 

Segunda opção: construir pontes com o Partido Republicano.

Alguém poderia dizer que Trump jamais se engajaria com Lula. Mas em março de 2002, se alguém dissesse que Lula e Bush construiriam uma relação de trabalho produtiva, daríamos risada.

Como foi que o Lula fez para destravar esse processo? Começou um trabalho de bastidor, construindo pontes. Não sei se, em segredo, o governo brasileiro está construindo pontes com o Partido Republicano. Tomara, porque a vitória do Trump é um cenário plausível.

O Brasil precisa estar preparado para, se necessário, fazer contenção de danos – e a única maneira é por meio de laços com o Partido Republicano.

E como fica a relação com Javier Milei?

Milei fez campanha criticando o Lula. Criticar o Lula fazia parte da campanha. Foi como Milei construiu a identidade política dele. 

As bravatas que ele falou contra o Brasil, no entanto, não foram implementadas. Ele não as implementou porque a Argentina depende do Mercosul. 

Mesmo moribundo, o Mercosul tem algo fundamental para a Argentina, que é a indústria automobilística, que fica na província de Córdoba – uma das províncias mais poderosas e influentes, que tem um governador forte e que apoia Milei. 

Milei não tem bala na agulha para lançar um projeto internacional contra o Brasil. Então, o que que a gente pode esperar? 

A relação nunca será um mar de rosas. Tende a ser a mesma relação que teria com um eventual governo Trump – nunca será ótima, mas pode acabar sendo péssima. 

Para o Brasil, a Argentina é um mercado importante, sobretudo para a Zona Franca de Manaus. Além disso, é muito difícil para o Brasil conseguir emplacar qualquer projeto na América do Sul se a diplomacia argentina estiver fazendo pressão contrária, com força.

No G20, a Argentina é um jogador relevante. Por todas essas razões, as bravatas deveriam ser deixadas de lado.