A ação da Qualicorp caiu ontem, depois que o projeto de lei que modifica a legislação sobre os planos de saúde, em tramitação no Congresso, causou confusão em setores do mercado.
 
O novo parecer do relator Rogério Marinho (PSDB-RN) acrescentou a expressão “de forma opcional” ao artigo que dispõe sobre a contratação de administradoras de benefícios como a Qualicorp — que intermedeiam a relação entre entidades de classe (associações, sindicatos etc) e operadoras de planos de saúde.
 
Em entrevista ao Valor ontem, o relator disse que quis deixar claro que “a contratação das administradoras é uma faculdade — e não uma obrigação das operadoras que comercializem planos coletivos.”
 
A “opcionalidade” não era uma novidade — está prevista na regulamentação dos planos coletivos desde 2009 — mas a corretora de um grande banco circulou um email dizendo que o assunto poderia impactar a Qualicorp, o que acabou acontecendo. A ação terminou o dia em queda de 3,2%, negociando o dobro do volume médio.
 
No início da tarde, o analista Roberto Otero, da Merrill Lynch, escreveu a seus clientes, “Nossa percepção é que alguns investidores estão lendo isto como uma mudança, ainda que não seja. … O texto proposto é bem claro ao enfatizar que a venda de planos de afinidade por meio de administradoras de benefícios é uma opção e não uma obrigação. A venda direta por parte de seguradoras ou grupos hospitalares a beneficiários não é permitida, pois constituiria uma venda direta de um plano coletivo para indivíduos. Neste caso, a regulação é clara que os serviços de back office e cobrança têm que ser oferecidos pela entidade contratante, o que não parece viável.”
 
O Brazil Journal conversou ontem à noite com a CFO da Qualicorp, Grace Tourinho, para esclarecer o impacto do projeto de lei sobre a empresa.
 
 

Da forma como está hoje, o projeto de lei que regula os planos de saúde é bom para quem, e ruim para quem?

Não acredito que haja “ganhadores e perdedores”. Este PL é mais uma etapa regulatória, dentro de um processo de aperfeiçoamento e melhorias do setor como um todo que se iniciou em 1998 com a Lei 9.656/98 e logo depois, em 2000, com a criação da ANS.  Na saúde suplementar, o consumidor e a sustentabilidade do setor são a base de tudo. Um não vive sem o outro.

Na última versão do PL, o relator, deputado Rogério Marinho, acrescentou a expressão “de forma opcional” ao artigo que trata da contratação de administradoras de benefícios como a Qualicorp.  Isso muda alguma coisa para vocês?
 
Não muda nada. No artigo 23 da Resolução Normativa 195, isso já está previsto desde 2009. Existem inúmeros contratos coletivos por adesão onde a entidade de classe (como por exemplo uma associação, ordem profissional e sindicato) celebra contratos direto com as operadoras sem a participação de uma administradora de benefícios. Neste caso, a entidade de classe contratante passa a ter obrigações administrativas e financeiras como qualquer pessoa jurídica contratante coletiva, como ocorre, por analogia, quando uma empresa contrata um plano de saúde coletivo.
 
Ou seja, nessa hipótese, em vez de haver uma relação da operadora com a administradora, passa a haver uma relação da operadora direto com a entidade de classe contratante. Como disse, a regulamentação sempre previu isso. Neste caso, a relação administrativa e financeira perante o beneficiário final será da entidade de classe e não da operadora, pois quando essa relação se dá diretamente entre o usuário final e a operadora, é um plano individual. Isso consta na mesma Resolução Normativa 195.


Qual é a propensão de alguém como a Bradesco Saúde ou a SulAmérica desintermediar a Qualicorp?
 
Estas duas operadoras, como todas as demais, precisam fechar seus balanços anuais no azul, ou seja, com lucro. E o maior ofensor disso hoje é, sem a menor sombra de dúvida, o aumento desenfreado dos custos médico-hospitalares que resultam na alta da chamada “curva de sinistralidade”. É dali que vêm os reajustes e a compressão de margens. Portanto, não é uma questão de desintermediar, até porque, como disse, a ausência da administradora apenas reverte à entidade de classe contratante a execução de todas as suas obrigações administrativas e financeiras de um contratante coletivo, o que nem sempre é o foco ou know-how da entidade contratante, e consequentemente pode implicar em riscos à operadora, como, por exemplo, o da inadimplência.
 
Quando a Qualicorp atua, isso dá segurança e tranquilidade à operadora. Além das nossas obrigações administrativas e financeiras, temos investido em parceria com algumas operadoras na gestão médico-assistencial de algumas carteiras específicas, com o foco em otimizar o atendimento médico, diminuir custos e agregar qualidade de atendimento ao consumidor, como é o caso de sucesso do QualiVida que desenvolvemos em parceria com a SulAmérica.


O relator também retirou da proposta o parcelamento do reajuste dos planos por faixa etária que seria aplicado aos idosos. Essa proposta conseguiu a proeza de unir tanto entidades de defesa do consumidor quanto as próprias operadoras contra o PL, mas por motivos diferentes. As entidades dizem que o parcelamento prejudicaria os idosos, e segundo a Fundação Getúlio Vargas, as operadoras perderiam R$ 64,9 bilhões em 20 anos se o parcelamento fosse permitido. Como é possível uma inovaçào dessas desagradar a gregos e troianos?

A ideia do relator era parcelar em X anos exatamente o mesmo reajuste que o consumidor inevitavelmente terá, por lei, de uma só vez ao completar 59 anos de idade. Nesse sentido, especificamente, o consumidor teria ganho real, pois teria parcelamento do reajuste que hoje, aos 59 anos, é cobrado “à vista”. O problema é que isso causaria uma quebra significativa no orçamento das operadoras, que hoje já é praticamente tomado pela alta dos custos médico-assistenciais, e poderia comprometer a solvência de algumas empresas.  Essa confusão mostra que o setor terá que enfrentar uma profunda revisão do seu processo de atuação, a começar pelo modelo assistencial e pelo modelo de remuneração médico-hospitalar,  visando melhorar o atendimento ao cliente por um lado e combater desperdícios e fraudes pelo outro.  Só assim o setor vai conseguir preços finais mais razoáveis pro consumidor final.   


Se a maior parte das despesas das operadoras – em torno de 80% segundo as próprias — referem-se a custos médico-hospitalares (sinistros), é correto afirmar que os hospitais são o elo mais forte do setor?

Não abordaria essa questão por esse lado da rentabilidade. A medicina no Brasil, especialmente a privada, é uma medicina de ponta de alta qualidade, que não deixa nada a desejar à de países do Primeiro Mundo. É natural que isso tenha um custo e, no mundo inteiro, a inflação médica costuma ser maior que a inflação financeira.
 
A questão, talvez, está na forma como a relação entre operadoras e prestadores médicos se dá hoje. As operadoras são reguladas pela ANS, mas os prestadores médicos, não — o que gera, por si só, uma assimetria na relação.
 
Além disso, o atual modelo de remuneração — que a gente chama no setor de ‘fee por service’ — acaba por premiar somente o uso e não o desfecho clínico, e isso precisa ser mudado urgentemente, assim como a necessidade de uma maior transparência dos custos médico-hospitalares, que salvo engano meu está sendo abordada nesse PL.