A Enron e a AOL eram duas grandes corporações dos Estados Unidos, admiradas por muitos e tidas como promessas de crescimento em seus setores.
Em 2000, a AOL se fundiu com a Time Warner em uma transação de US$ 182 bilhões, até hoje uma das maiores da história. Já a Enron esteve em sétimo lugar no ranking da Fortune 500, e foi considerada por seis vezes (pela mesma revista) a empresa mais inovadora da América.
Mas as duas empresas protagonizaram escândalos contábeis e financeiros que causaram perdas bilionárias a acionistas, funcionários e a todos que possuíam alguma relação com elas.
A Enron faliu, e a AOL foi desmembrada da Time Warner em 2009 – até ser vendida anos depois para a Verizon por US$ 4,4 bilhões.
Ambas tinham em comum, além de problemas de governança, uma “contabilidade criativa” que “permitiu” capitalizar as vendas futuras como ativos – em alguns casos, até como receita – gerando resultados fictícios que posteriormente vieram à tona e causaram as perdas bilionárias.
A Enron contabilizava como parte do seu faturamento presente contratos de venda futura de energia, que não seriam necessariamente realizados.
Já a AOL produzia e distribuía CDs (inclusive no Brasil) em jornais e caixas de cereais. Na sua contabilidade, estes CDs eram considerados ativos em vez de despesas – e, pelo menos no papel, também geravam receitas. (A justificativa era que uma parte dos CDs distribuídos permitia conquistar clientes que ficavam na empresa por um tempo.)
Mas o que Enron e AOL têm a ver com a 123 Milhas, que acaba de pedir recuperação judicial? A criatividade contábil.
Há algum tempo, já me impressionava o enorme volume de publicidade da 123 Milhas. Uma notícia do UOL de 21 de agosto cita um ranking do Meio & Mensagem que coloca a 123 Milhas como o maior anunciante do Brasil em 2021 e o segundo maior em 2022, com investimentos de R$ 2,37 bilhões e R$ 1,18 bilhão, respectivamente. Só isso já deveria chamar a atenção.
Outra coisa que chama a atenção é como uma empresa com receita líquida de R$ 171,2 milhões em 2021 e R$ 278,2 milhões em 2022 conseguiu ter lucro líquido em 2021 e um pequeno prejuízo em 2022 depois de incorrer em gastos bilionários com publicidade nesses dois anos.
As demonstrações financeiras da 123 Milhas, disponíveis no processo de recuperação judicial, mostram que a empresa lucrou R$ 5,4 milhões em 2020 e R$ 16,5 milhões em 2021, antes de sofrer um prejuízo líquido de R$ 13,6 milhões em 2022.
A resposta para essa charada é que a 123 Milhas decidiu capitalizar os gastos de marketing como ativos em vez de lançá-los como despesas, fazendo com que os ativos ficassem inflados e os prejuízos fossem reduzidos, virando até lucro em alguns períodos.
Esse tipo de procedimento, utilizado por meio de uma interpretação “criativa” do CPC 04 (R1) – que versa sobre a contabilização de ativos intangíveis – foi adotado de forma similar pela Enron e pela AOL.
Aparentemente a 123 Milhas fez algo semelhante a essas duas empresas americanas, mas, em vez de usar CDs ou contratos de venda de energia, usou a contabilização dos gastos de marketing.
Assim, quanto maiores fossem os gastos com publicidade, maior seria o ativo sem afetar a demonstração de resultados.
No final de 2022, a 123 Milhas tinha mais de R$ 809 milhões como “investimento em formação de carteira”, a conta do ativo que representa os gastos de marketing.
No entanto, a empresa precisava de recursos financeiros reais para operar, então a saída que encontrou foi descontar os recebimentos futuros das vendas de pacotes de viagem.
Isso elevou a dívida. Esse aumento, somado à alta dos custos de viagem e dos juros, no Brasil e no exterior, só fez a bola de neve crescer e ficar fora de controle, resultando na recuperação judicial e em prejuízos para todos relacionados com a empresa.
Não classificaria o caso da 123 Milhas como uma pirâmide, e sim como uma estratégia de ‘pump and dump’ – de crescer a empresa artificialmente para depois vendê-la.
Nos Estados Unidos, os escândalos da Enron e da AOL levaram à criação da lei Sarbanes-Oxley (SOX) em 2002 e a uma maior conscientização sobre a importância da governança corporativa.
Aqui, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis e a CVM poderiam aproveitar a oportunidade para rever o CPC 04 (R1) e tentar evitar casos “criativos” como este – assim como o Ministério do Turismo poderia fiscalizar as finanças e práticas contábeis das empresas do setor que atingissem um certo porte ou participação de mercado.
A contabilidade é uma área do conhecimento em que a criatividade não é bem-vinda.
Ricardo Rochman é professor de finanças da FGV EAESP.