O aumento impressionante da conta dos chamados precatórios, associado à vontade do Executivo de criar “espaço fiscal” nas contas públicas em período pré-eleitoral, resultou em uma proposta de emenda à Constituição Federal (PEC) que parcelaria os precatórios de valor a partir de cerca de R$ 450 mil.

O Ministro da Economia declarou que o intuito da medida é transformar uma “chuva de meteoros” fiscal em uma “chuva de meteoritos”, preservando o teto de gastos instituído em 2016.

O mercado reagiu com um certo susto, refletido no mercado futuro de juros e, em certa medida, na cotação do real (dada a quantidade de ruído vindo de Brasília nos dias de hoje, é difícil mensurar quanto do estresse nos preços vem de cada fator).

Confesso ter ficado um pouco chocado com a qualidade dos argumentos levantados em torno da medida proposta pelo governo.  O tema já é indigesto e difícil, mas o debate público está criando uma confusão francamente desnecessária. Para tentar entender o “imbróglio”, há algumas perguntas essenciais.

O parcelamento resolve o problema?  Difícil responder a esta pergunta sem definir a natureza do problema: o desafio é preservar a credibilidade da nossa trajetória fiscal. O teto de gastos é a nossa importantíssima âncora institucional. O teto nos permitiu criar, junto ao mercado, um compromisso crível de consolidação das contas públicas. Nesse sentido, a Emenda Constitucional não “resolve” problema algum criando um limite para o pagamento das despesas com condenações judiciais – apenas oficializa uma espécie de moratória. Agora, imaginem o caos se o Ministro da Economia anunciasse um teto de despesas com juros (na linha do que fez certa vez um candidato presidencial…)

O que determina a trajetória da dívida?  A chave para o controle nunca foi colocar um limite sobre o pagamento de despesas, mas sim sobre a sua contratação. Em outras palavras, a ancoragem do custo de capital se dá com a sinalização de que o governo vai contrair menos dívida no futuro, não de que não irá honrar a dívida contraída.

A PEC não diminui a magnitude das dívidas, simplesmente difere seu reconhecimento e, eventualmente, seu pagamento. Seria surpreendente que esse artifício servisse para “acalmar” o mercado. Por que então tanta gente aposta nessa solução? Em certa medida, a resposta reside na forma como governos contabilizam suas despesas.

Como funciona a contabilidade pública?  De forma geral, as empresas contabilizam direitos, obrigações, receitas e despesas com base no regime da competência. As despesas diminuem o resultado quando devidas (e não quando desembolsadas), as obrigações vão para o passivo quando contratadas ou incorridas.

Já na contabilidade pública, despesas e receitas são apropriadas, com alguma simplificação, com base no regime de caixa, isto é, são registradas apenas quando efetivamente recebidas (receitas) ou empenhadas (despesas).

Daí a mágica: postergue o pagamento da despesa e — voilá — a contabilidade deixa de reconhecê-la. O que muitos esquecem é que a contabilidade é apenas um sistema de registro. Em uma analogia crua, a contabilidade é um termômetro. E evitar que o termômetro meça a febre não muda o estado de saúde do enfermo.  Se os mercados perceberem a “saúde do paciente” se deteriorando, vão reagir reduzindo sua exposição ao risco, e ponto final.

Do ponto de vista das contas públicas, o que afinal são os precatórios?  Essa é fácil. Uma condenação judicial em relação à qual não caiba mais recurso é uma obrigação e — como tal – deve ser custeada com nossos impostos. Nesse sentido, a eventual não contabilização de R$ 80 bilhões em precatórios em 2021 não mudará a realidade: a conta está lá e eventualmente deverá ser paga por todos nós.

E se os precatórios não forem pagos?  Na prática, até que entrem na contabilidade do Tesouro, os precatórios são dívidas “fora de balanço” (off-balance sheet liabilities). Como investidores em dívida soberana em mercados emergentes (é o meu caso) bem sabem, nem toda dívida pública é tratada de forma igual. E quão mais frágil fiscal e institucionalmente for o país, maior a discrepância no tratamento de credores.

O preço no mercado secundário de um bônus argentino, denominado em dólares e sujeito ao direito estrangeiro, é completamente distinto de um crédito derivado de um contrato de fornecimento, denominado em pesos e sujeito ao direito local.

O envio da PEC consagra um tratamento de “dívida de segunda classe” dado aos precatórios federais. O efeito de segunda ordem imediato é que a percepção de solvência do governo no mercado local de serviços vai mudar drasticamente.

Em fevereiro deste ano, por exemplo, o Ministério da Saúde anunciou a construção da maior fábrica de vacinas da América Latina, em um projeto no qual investidores aportarão R$ 3,4 bilhões para construir um complexo industrial. O investidor terá seu retorno arrendando a fábrica ao Ministério da Saúde por 15 anos. Quem, em sã consciência, vai aportar R$ 3,4 bilhões em um investimento garantido, no fundo, por um precatório?

Então, qual a solução para preservar o teto de gastos? O aumento repentino com as despesas com precatórios é fruto de um esforço extraordinário do Judiciário de limpar a pauta do contencioso fiscal que patina há décadas nos tribunais.

Do ponto de vista do mercado, despesas criadas por eventos fora do controle da União e, de certa forma, não-recorrentes, são menos preocupantes. O que realmente assusta é a latitude que a flexibilização do teto criaria para arbitrariedades na busca por “espaço fiscal”.

Nesse contexto, me parece que a solução para esta confusão passa por uma PEC bem diferente da que está proposta: ao invés da moratória ou do default seletivo, a nova PEC excluiria os pagamentos de precatórios judiciais da base de cálculo do teto de gastos, mas de forma retroativa – recalculando a série a partir de 2016 como se os precatórios pagos nunca tivessem sido parte das despesas primárias. 

Dessa forma, preservam-se os pagamentos sem que isso abra um “espaço fiscal” arbitrário ao governo federal. E os investidores podem acompanhar o “registro contábil” da evolução das despesas primárias de forma coerente e confiável.

Essa medida teria um efeito indireto adicional, extremamente saudável: como vimos pela reação do governo à chuva de meteoros, hoje os incentivos estão todos voltados ao diferimento do reconhecimento de passivos públicos. Parte da gênese do nosso ambiente de excesso de litigiosidade crônica vem daí.

Um processo que demora 30 anos para acabar é uma conta que leva décadas para ficar transparente ao público….e muitas vezes é corrigida a uma taxa superior àquela na qual se financia o governo, “destruindo valor para o próprio contribuinte” (que inevitavelmente paga a conta no final).

Na gestão pública, talvez tenha chegado a hora de sermos menos contadores e mais economistas.

 

Daniel Goldberg é o sócio-gestor da Farallon Latin America. Foi presidente do Morgan Stanley do Brasil e Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça.