Numa famosa mesa de pôquer que se reunia semanalmente, um jogador, passando por dificuldades financeiras, perdeu e deu um cheque pré-datado para saldar a dívida. Na semana seguinte, o jogador voltou e ganhou bem. Ao fim da jogatina, alertou aos parceiros: “Cheque meu eu não aceito!”

Essa fábula pré-PIX ilustra bem a postura do Governo brasileiro. Na semana passada, o Ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, afirmou, ao sair de uma reunião com o Ministro Fernando Haddad, que “a orientação do governo é de não aceitar o uso de precatórios para pagamento de outorgas”.

A declaração foi uma prévia do que estava por vir. Ontem, uma semana depois da entrevista, o Governo Federal revogou um ato normativo da Advocacia-Geral da União (AGU) que regulamentava a aceitação de precatórios.

Acontece que o uso de precatórios para essa finalidade está previsto de maneira expressa na Constituição, possuindo eficácia plena e expressa previsão de auto-aplicabilidade.

Para entender melhor o imbróglio, voltemos um pouco no tempo.

Precatórios são um título dado a quem venceu determinado processo contra o Estado. Ou seja, o cidadão aciona o Estado, vence, mas ali só recebe o direito de receber, um dia. Um calote.

Em 2021, ao se deparar com uma conta elevada de precatórios a pagar, o Governo fez passar a Emenda Constitucional 114, que flexibilizou a ordem de pagamento dos precatórios, autorizando, em resumo, que União liquide tais títulos quando quiser. O calote do calote.

Na tentativa de amenizar os impactos dessa nova regra, o Congresso aprovou outra Emenda Constitucional permitindo que precatórios sejam ao menos utilizados para saldar dívidas que os contribuintes têm com o ente devedor – por exemplo, no pagamento de outorga de concessões públicas e quitação de dívidas tributárias.

A ideia, claro, era dar um mínimo de liquidez aos precatórios. Na sequência, foram editados um Decreto (subscrito pelo Presidente da República) e uma Portaria da Advocacia-Geral da União.

Mas o Brasil é um jogo de surpresas velhas. Para desgosto dos bem pensantes, em um pronunciamento desconectado da realidade, colocado em prática com a revogação da Portaria da AGU, o Governo Federal expôs um posicionamento contrário ao modelo determinado na Constituição Federal. O calote do calote do calote.

Os representantes do Estado brasileiro não podem avisar que vão, deliberadamente, descumprir a Constituição. Isso é flertar perigosamente com a barbárie.

Muito curiosa também foi a pretensa justificativa do Ministro. Segundo ele, melhor proibir sob pena de que “ … outras empresas que não entraram nas concorrências dissessem ‘se soubesse que eu ia usar precatório eu usava precatório’. Precatório não é uma coisa que vence hoje, tem precatório que vence daqui um ano, precatório que vence daqui pra frente.”

Ou seja, o Ministro pressupõe a estupidez de players privados que estão disputando as concessões. Mais, pressupõe que eles e seus assessores desconhecem a Constituição. E sendo assim, para proteger os estúpidos e mal-informados, decide ignorar a Constituição.

Para além de um insulto à inteligência coletiva, a restrição sugerida pelo Ministro Márcio França representa mais um capítulo na longa história de atos que tiram a credibilidade do Brasil perante investidores, externos ou internos.

Quem trabalha no dia-a-dia do tema sabe que precatórios têm sido recusados para o pagamento de concessões e embaraços têm sido criados para seu uso mesmo na quitação de grandes transações tributárias (com a propositura de ações rescisórias mirabolantes de surpresa pela AGU).

A declaração do Ministro França ao menos tem o mérito de demonstrar que o descumprimento da regra legal é uma política de Estado, permitindo que o tema possa ser discutido às claras.

A obediência à ‘rule of law’ e aos contratos não tem nada de ideológico. Basta ver que tanto o Governo anterior como este deram mais uma volta no parafuso do calote, que a cada giro desmoraliza mais o Brasil e o aproxima de uma Argentina.

Resta rezar um réquiem para a segurança jurídica, lembrando da feliz advertência de Millôr Fernandes: “o Brasil tem um enorme passado pela frente.”

Luiz Gustavo Bichara é sócio do Bichara Advogados.