O caos impera na cozinha de Donna Berzatto.

É Natal e ela está preparando a ceia para uma mesa grande – seus três filhos e toda a família estendida, mais vários amigos. Seguindo uma tradição italiana cujo significado ninguém sabe ao certo, Donna está assando sete diferentes peixes no forno, enquanto também cozinha várias guarnições.

Há panelas fumegando sobre o fogão e empilhadas dentro da pia, e há molho de tomate em toda a cozinha – no chão, no teto, no microondas e no timer que toca a cada poucos minutos para avisar que é preciso colocar outra travessa no forno. Cigarro aceso em uma mão e taça de vinho tinto na outra, Donna berra instruções erráticas ao filho Carmen – ou Carmy, para amigos e familiares –, que, mesmo sendo um chef consagrado, não sabe bem como ajudá-la.

Agitada, a matriarca recebe os convidados com um misto de irritação mal-contida e alegria maníaca. Está claro que seu nervosismo não vem apenas da tarefa impossível que ela mesmo se impôs: Donna está no limite de sua frágil condição psicológica. Em algum momento da noite, ela terá de explodir. 

Intitulado “Peixes”, o sexto episódio da segunda temporada de The Bear oferece uma angustiante incursão ao passado de Carmy, cujo desespero mal contido sob uma capa de distanciamento emocional é muito bem representado por Jeremy Allen White. Talvez tenha sido para fugir de sua turbulenta família em Chicago que o protagonista da série construiu uma notável carreira, com um estágio no Noma, em Copenhagen, restaurante que já foi reputado o melhor do mundo.

O ponto de partida da brilhante série criada, roteirizada e dirigida por Christopher Storer – exibida no Brasil pela plataforma Star+ – é o retorno de Carmy a Chicago. Ele vem assumir o restaurante que seu irmão mais velho, Michael (Jon Bernthal), lhe deixou de herança quando se matou com um tiro na cabeça.

Especializado em sanduíches de carne consumidos por trabalhadores em uma área da cidade que já viu dias melhores, The Original Beef of Chicagoland revela-se um desafio impossível. Mal cotado pela vigilância sanitária, o restaurante acumula dívidas – e os registros contábeis deixados por Michael Berzatto revelam-se tão bagunçados quanto a cozinha de sua mãe.

Carmy ainda tem de enfrentar resistências na equipe. O bravateiro Richie (Ebon Moss-Bachrach ), amigo da família que ocupa um posto meio incerto na administração do estabelecimento, opõe-se às mudanças que o chef quer fazer. A recém-contratada Sydney (Ayo Edebiri) alia-se provisoriamente a Carmy, ainda que ele se mostre pouco aberto a suas sugestões.

Inflamados por essas tensões crescentes, os episódios da primeira temporada são ruidosos e furiosos. Ágil e nervosa, a edição reproduz a vertigem da cozinha quando a casa está cheia. O espectador quase sente o calor do fogão.

Na segunda temporada, Carmy, agora com a parceria da irmã Natalie (Abby Elliott), arrisca-se a reformar a decadente lanchonete para convertê-la em um templo da alta culinária. O novo restaurante se chamará The Bear, outro apelido de Carmen, derivado do sobrenome Berzatto.

O ambiente econômico não é dos mais propícios: no rescaldo dos anos deficitários da pandemia, restaurantes de Chicago ainda estão fechando as portas. Sydney, que aceitou ser sócia na empreitada, teme um novo fracasso em sua vida: no passado, ela montou um serviço de buffet, que faliu.  

Como na primeira temporada, o aperto financeiro e os traumas pessoais cercam os personagens. Mas, em meio a brigas e desconfianças mútuas, abre-se espaço para episódios mais tranquilos, contemplativos – verdadeiras digressões sobre a arte culinária. 

É um deleite acompanhar Sydney percorrendo restaurantes, lanchonetes e cafés de Chicago em busca de inspiração para um novo cardápio. É comovente ver Marcus (Lionel Boyce), confeiteiro talentoso mas ainda inexperiente, descobrindo toda a beleza e a delicadeza de seu ofício em um estágio em Copenhagen. E é surpreendente assistir ao brigão Richie suavizando suas arestas enquanto dá polimento a centenas de garfos no restaurante onde treina como garçom.

Uma das melhores séries dos últimos anos, a criação de Storer celebra o encantamento de um prato feito com amor e arte, seja um sanduíche proletário do Original Beef ou um requintado caldo de osso acompanhado de uvas congeladas servido como entrada no The Bear. Os distúrbios mentais de Donna, os traumas familiares de Carmy, os ressentimentos de Richie e o sentimento de fracasso de Sydney – desse caldo amargo, nascem milagres culinários.