Em 1960, havia uma centena de países considerados de renda média. Não eram pobres, mas ainda estavam distantes dos mais avançados. De lá para cá, apenas 13 ficaram ricos – e o Brasil, como bem sabemos, não foi um deles.
Em “Nós do Brasil: Nossa herança e nossas escolhas” (Record; 252 págs.), a economista Zeina Latif investiga as razões do atraso brasileiro. O trabalho traz um conjunto impressionante de análises, dados, estudos e comparações internacionais. Zeina procura, como diz, “compor o quebra-cabeça dos fatores que impactam o crescimento do país”.
A investigação não fica restrita à economia: passeia pela história e pela ciência política. A economista analisa como se formaram as nossas instituições e como elas forjaram a sociedade brasileira. No final, tenta responder à questão: “O Brasil está condenado ao baixo crescimento e ao desenvolvimento medíocre ou há amadurecimento institucional em curso?”
Zeina conversou com o Brazil Journal na quinta-feira pela manhã, pouco depois de ter sido nomeada para assumir a Secretaria de Desenvolvimento do Estado de São Paulo.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
A sua análise converge para dois grandes nós históricos que emperraram o desenvolvimento brasileiro: a educação e o patrimonialismo. Por quê?
Existe um grande consenso na academia a respeito da importância da educação não apenas para o desenvolvimento do capital humano, mas também para o desenvolvimento da democracia e o exercício da cidadania. São efeitos multiplicadores.
O segundo nó está intimamente ligado ao patrimonialismo, mas no fundo é o nó da política. Temos um país que nasceu nas bases do patrimonialismo, que é a materialização das instituições extrativistas.
Esse patrimonialismo foi mudando de desenho com o tempo mas foi se consolidando. Isso moldou a sociedade e moldou a política. Teve a ver também com a participação dos militares. Faço uma reflexão a partir da leitura de José Murilo de Carvalho. As intervenções das Forças Armadas, ao longo da história, foram fruto da incapacidade dos civis, da nossa elite, de fazer a barganha política.
Como isso ocorreu?
O Brasil só foi ter uma ideia de nação, de forma não reversível, com Getúlio Vargas – e numa ditadura. Até então, era um país muito dividido. Estamos falando de uma República que não nasceu de um movimento popular, como a Independência também não foi um movimento popular.
Tínhamos uma elite que buscava a ordem. Não tinha valores democráticos e a capacidade de barganha política. Aí, obviamente, apoiou-se nas Forças Armadas. Isso atrapalhou muito o amadurecimento político do país – e moldou a política e a sociedade. Vemos hoje uma dificuldade da política para enfrentar o patrimonialismo. Não conseguimos traduzir o anseio da sociedade em relação às políticas públicas e à representatividade.
O Brasil iniciou o século 20 com indicadores de educação muito abaixo dos países europeus e dos Estados Unidos. O analfabetismo era superior ao existente em outros países da América Latina. Qual a raiz dessa negligência histórica da elite política e econômica brasileira?
O racismo está na base dessa negligência. Não é a única explicação, mas minha análise é que ele está na base. Aí é importante pensar na diferença em relação aos Estados Unidos. Lá havia racismo, mas havia também uma visão mais pragmática e empresarial dos latifundiários. Depois do fim da escravidão, houve segregação, mas os negros tiveram direito constitucional de ter acesso à educação, ainda que em escolas separadas.
Um ponto fundamental é que os produtores rurais do Sul dos Estados Unidos, os donos de terras, tinham um capital humano maior do que o dos brasileiros. Eles investiram em máquinas e em inovação, trocavam informações e experiências. Aqui, a maioria dos produtores rurais nem alfabetizada era. O capital humano da elite americana era maior. Era uma elite mais empreendedora.
Se pensarmos nas loucuras do custo Brasil, são problemas que vêm do passado e se retroalimentam. Aquele empresário que tinha uma mentalidade não muito empreendedora, carregando o nosso passado, apoiou-se no estado intervencionista. Ficou na sua zona de conforto e, quando pensa em sair, cai no custo Brasil, gastando tempo com a burocracia, com as mudanças de normas e regras, com os contenciosos tributários. Acaba sufocado.
Mas existem setores mais dinâmicos e inovadores no País, não?
Sim, com certeza. Felizmente, temos hoje condições de mudar de desenho institucional, graças à nova geração, com um desejo de uma intervenção mais leve e eficiente do setor público. Trato disso em um capítulo em que falo da nova classe média e busco explicações para a vitória de Bolsonaro, pensando não do ponto de vista dos valores morais, mas do ponto de vista de uma sociedade que quer empreender, dos jovens batalhadores que não querem o estado atrapalhando.
De alguma forma, Bolsonaro capturou esse sentimento.
Temos uma segmentação na sociedade. O Brasilzão velho defende os seus benefícios e proteções e se acomodou a eles. Defende porque diz, “Puxa, fiz meu plano de negócios contando com esses benefícios”. O problema é que se trata de uma visão curta e, se continuarmos assim, todos morreremos afogados. Ou melhor, já estamos nos afogando, porque estamos crescendo menos que a América Latina. Esse grupo do Brasil velho atrapalha a aprovação de reformas. Ter esses dois Brasis é uma boa notícia.
Por quê?
Porque antes não havia essa demanda por uma ação estatal mais leve. Prevalecia o patrimonialismo, e as pessoas muitas vezes nem se davam conta disso. Era um pensamento quase único: intervenção estatal, proteção, política setorial. Hoje vemos uma discussão mais rica, não tão hegemônica, refletindo esses anseios da sociedade. Por isso vejo nessa divisão uma boa notícia.
A academia costuma jogar sobre as elites a responsabilidade pelo atraso brasileiro. Mas você dedica um capítulo à responsabilidade da academia pelo atraso. Como ocorreu isso?
A academia brasileira se afastou muito das referências internacionais. A ideia de produzir ciência, no sentido de olhar os números, testar hipóteses e fazer o debate em cima disso. É assim que deveria avançar a pesquisa acadêmica. Não vou ser ingênua de achar que não existe influência ideológica na pesquisa, mas o que a gente fez foi politizar a pesquisa e o debate acadêmico. Fazem acusações pessoais em vez de rebater ideias com base na pesquisa empírica.
Podemos discutir quem deve ser mais ou menos responsabilizado pelo atraso brasileiro, mas o fato é que foi uma construção conjunta. Para desatar os nós, terá que ser uma construção conjunta também. Daí a importância de termos lideranças políticas capazes de entender o momento do País e entender que existem janelas de oportunidades que precisam ser aproveitadas.
A solução passa pela política então?
Sem dúvida. Num país como o nosso, que não tem instituições democráticas tão sólidas e maduras, a dependência de boas lideranças políticas é maior. Isso, obviamente, é um nó, porque ficamos na dependência de vermos o surgimento dessas lideranças.
Poucos países conseguiram escapar da armadilha da renda média nos últimos anos. Como o Brasil pode seguir o exemplo deles?
Os países que saíram dessa armadilha tiveram condicionantes que ajudaram, como foi o caso de Portugal, ao ingressar na União Europeia. A Coreia do Sul conseguiu dar saltos quando tinha um governo autoritário. Fazer reformas numa democracia é mais complexo, embora os estudos indiquem que, no longo prazo, há mais casos de sucesso com democracias do que em regimes autocráticos.
Na América Latina não houve um evento externo que gerasse o sentimento de urgência. Mas a Austrália também não teve algo do tipo e mesmo assim conseguiu se organizar, com reformas nos anos 1980 e 1990. O importante não é discutir o tamanho do estado, mas a qualidade da intervenção. Precisamos ter avaliação de políticas públicas.
Sem dar grandes spoilers sobre as conclusões do livro, há motivos para esperança? Ou o Brasil está condenado ao atraso e à desigualdade?
Vejo uma classe média incomodada, ainda que pouco representativa, com o desejo de prosperar e ter serviços de melhor qualidade. A sociedade está mais exigente. Outra coisa: o debate público é mais diversificado, não existe um pensamento único. Até mesmo entre as lideranças empresariais. O debate foge daquele discurso desenvolvimentista tradicional.
A maior concorrência na política também ajuda. Há gestões mais pragmáticas, sem dogmas, procurando fazer a coisa certa, copiando bons exemplos.
Vemos esse movimento acontecendo no Brasil. A interrogação que fica é se teremos ambição suficiente para acelerar essa transformação. É uma questão de velocidade. Não pode ser tão lento. É muito perigoso. A armadilha do baixo crescimento é enorme.