Paulo Leme acaba de se juntar à XP como chairman do comitê de alocação global da XP Private.

11023 2bcbebdd 9026 b5af 420b 866893b91952Leme tem mais de 35 anos em instituições como o FMI, onde foi por dez anos o economista-sênior, e na Goldman Sachs, onde foi head de mercados emergentes nos Estados Unidos e o CEO da operação brasileira. 

Mestre em economia pela Universidade de Chicago, Leme começou a dar aulas de finanças na Universidade de Miami há dois anos.

Nesta conversa com o Brazil Journal, Leme explicou como está vendo a pandemia, a atuação dos Bancos Centrais e as oportunidades em meio à crise — incluindo seu cenário para as bolsas americana e brasileira. 

Abaixo, os principais trechos da conversa, que aconteceu na terça passada:

U, V, W ou L?  Qual letra vai representar a recuperação da economia americana?

Eu diria que é um ‘U’, mas talvez a barriga do ‘U’ seja mais alongada. Mas o que precisa ser dito de cara é que a modelagem da parte macro, do ciclo econômico, depende fundamentalmente do tempo de fechamento das economias e da normalização das atividades — o que depende de um modelo epidemiológico. Quanto mais curta for a primeira onda, e se o Governo for eficaz em conter o contágio na segunda onda, poderia ser um ‘U’ bem apertado, e a partir do quarto trimestre já ter uma recuperação. Como a economia estará muito deprimida, o efeito da base estatística vai ser muito forte, gerando um efeito de crescimento muito grande não só do PIB como do lucro das empresas. Mas vai depender fundamentalmente da epidemiologia do processo. 

Qual é o impacto dessa injeção de liquidez brutal na economia global? 

O efeito não é o de política monetário normal, porque estamos em tempos extraordinários. Essa injeção — e vou focar minha resposta no Fed e nos bancos centrais europeu, do Japão e da Inglaterra — tem dois efeitos fundamentais. O primeiro é a normalização de mercados que estavam congelados: você não conseguia preço na tela nem para o ativo mais líquido no mercado de maior profundidade, que é o de Treasuries. 

O efeito nesse sentido tem sido muito positivo. Foi possível normalizar mercados que estavam completamente quebrados. Um exemplo: o mercado de swap em dólar estava sem nenhuma liquidez. O Fed entrou dando linhas de swap, inclusive para o Banco Central do Brasil, e isso conseguiu destravar esse mercado de derivativos. 

O segundo efeito foi reabrir o mercado de high yield e o mercado de bonds de governos regionais, que também já está resolvido. Por último, o efeito terciário é menos na atividade econômica e mais no valor dos ativos. Na crise, o mercado prefere ir para empresas conhecidas e sólidas, e o investidor encontrou um substituto para a renda fixa no mercado de ações. 

Esse ‘V’ que o S&P fez não é um ‘bull trap’?

Esse repique que o S&P teve é atípico. Quando se olha crises anteriores — 1987, 2000, 2008 — há uma entrada gradual do bear market e uma falsa recuperação. O mercado chega a um piso local, recupera, volta a cair, e só depois de duas, três quedas, que o mercado volta a estabilizar e volta a um bull market.

Como ainda podemos ter uma segunda e terceira onda de contágio, eu diria que o cenário mais provável é que ocorra uma recessão mais profunda e prolongada. O mercado já descontou as grandes perdas que virão no segundo trimestre, mas ainda não precificou possíveis perdas maiores no terceiro e quarto trimestre deste ano. 

Hoje, o S&P 500 está em torno de 2.940 pontos. Eu não acho que deve cair de novo para 2.230 (o low). Mas poderia testar 2.500 ou algo próximo disso. Cairia e voltaria novamente a se recuperar dependendo do tipo de surpresa que tivermos, positiva ou negativa. 

Com toda essa injeção de liquidez na economia global, a inflação não está vindo aí?

Acho que na situação atual o grande risco é mais de deflação do que de inflação. Podemos ver inflação de ativos, como já ocorreu, mas na economia eu não me surpreenderia de ver a inflação mais próxima de zero, inclusive com taxas negativas em alguns meses. Até no Brasil começamos a ver isso. 

Em termos de alocação de ativos, quais oportunidades vocês estão vendo no mercado brasileiro e global?

Luciano Telo [CIO da XP Private, que participou da conversa]: Estamos recomendando uma combinação de Bolsa brasileira e Bolsa americana, e posições na NTN-B mais longa, para 2035. Também estamos recomendando proteções nas posições de Bolsa. Sempre temos uma operação de put spread, que possa mitigar a volatilidade. Não estamos indo de peito aberto. É uma combinação de Bolsa brasileira, Bolsa americana, papel ligado à inflação no meio da curva e um pouco mais de caixa do que tínhamos ano passado.

Na alocação global, demos um peso muito maior aos EUA e tiramos posições de outros mercados centrais como Europa e Japão. Além disso, temos posição em ouro desde o ano passado.

Entre a Bolsa brasileira e americana, vocês enxergam mais oportunidades em qual?

Telo: A Bolsa americana fez esse ‘V’ mais fechado. A recuperação foi mais rápida, e a gente já esperava isso porque o pacote americano tem condições de ser maior e o mercado americano se ajusta mais rapidamente mesmo. O Brasil deve acompanhar com o tempo. Essa crise atrapalhou mais os emergentes do que a crise de 2008, a saída de investimentos foi maior.

Leme: Nos EUA, acho que ainda temos o risco de testar níveis mais baixos caso haja notícias piores em termos de atividade e lucro das empresas. Mas em matéria de destino final, eu diria que a recomendação para uma carteira global é ‘overweight’ Estados Unidos e, nos Estados Unidos, ‘overweight’ no mercado de ações. Pode parecer que 2.940 no S&P é excessivo, mas no interior, quando você decompõe o índice, ele reflete muito bem as dificuldades que algumas empresas vão sofrer, assim como a situação de companhias que estão indo bem, que tem grau de capitalização muito elevado, nível de alavancagem baixo, e que tem cash e geração de fluxo. 

Esses setores que estão sendo punidos em termos de preços podem ser oportunidades. Em algum momento essas empresas de aviação, turismo, cruzeiros vão passar pelas dificuldades e, havendo uma retomada da atividade, há potenciais de upside de 40%, 50%, 100% olhando o P/E histórico dessas companhias. O problema é a queima de caixa, caso o ciclo se estenda. 

Da mesma maneira vejo o Brasil: entre a atividade e o câmbio, acho que no curto prazo a Bolsa brasileira sofre com dois grandes desafios e tem um grau de incerteza muito elevado. Mas risco é oportunidade. Em algum momento, nós temos a possibilidade de reancorar as expectativas da economia, voltar às reformas, e com isso, uma vez que se esgotem os elevados retornos potenciais dos EUA, teremos o retorno desse capital que vai sair de ativos de menor risco e buscar os emergentes. E a Bolsa brasileira acho que é um dos terrenos mais promissores para o futuro.

Quanto do câmbio fraco você atribui à política monetária e quanto à volatilidade da política brasileira?

A taxa de câmbio no Brasil está altamente subvalorizada: o real está muito mais depreciado do que o necessário para equilibrar o balanço de pagamentos. Mas você só pode escolher uma de duas variáveis: preço ou quantidade. Você não pode escolher duas. 

Se você escolher a taxa de juros, é o mercado que vai precificar o câmbio. Ao reduzir, corretamente, a taxa de juros para 3% isso tem consequências imediatas porque você está exposto ao risco-país e não tem retorno em dólar para o investidor estrangeiro. Então ele está saindo de Bolsa e da renda fixa local. E está indo pra onde? 

O México, por exemplo, oferece 6% de remuneração numa moeda que sofreu menos que o real. Esse investidor  de curto prazo que busca carrego vai para o México e sai do Brasil.

Quando você tem uma moeda com um mercado muito profundo, de trilhões de dólares, especialmente mercados futuros, e que é referência em mercados emergentes, ela passa a ser um veículo muito barato para você expressar uma visão negativa de mercados emergentes. Não é nada pessoal contra o Brasil, é simplesmente muito barato fazer essa operação. Nessas condições, a taxa de câmbio fica completamente desancorada e qualquer notícia política pode gerar esse overshooting, que é o que estamos vendo. 

Muitas bolas de cristal estão prevendo que a pandemia vai significar o fim da hegemonia chinesa nas cadeias de produção. Quanto dessa produção você acha que vai voltar para os EUA?  É algo apenas anedótico ou vai ser brutal?

Não acho que seja algo brutal simplesmente por uma razão: eficiência e custo. Alguns setores, como médico, farmacêutico, é possível que tenha um redirecionamento, mas em termos de porcentagem eu diria que será pequeno. Caso eu esteja errado e haja uma mudança radical — porque você sente um vento nacionalista que é bastante preocupante a nível global — poderíamos ter um caso de depressão econômica. 

O que causou o agravamento da Grande Depressão em 1929/30 foi justamente o protecionismo, a guerra tarifária e cambial entre os países, com um sentimento muito nacionalista. Ao se fechar e destruir o volume do comércio internacional, houve um choque negativo adicional além do que já tinha. Espero que a gente não vá nessa direção. 

Como a comunidade financeira internacional vê o Brasil hoje?

Não vê bem, mas isso já vem antes da epidemia por questões ambientais e de dificuldade de prever o cenário político e menor rentabilidade dos ativos. Já havia essa saída de capitais. Há um noticiário ruidoso e isso dificulta a volta do investidor estrangeiro. Mercado é retorno e preço. Você pode fazer o que quiser, mas o investidor só volta quando houver a recompensa adequada. 

Quais as chances de um downgrade do Brasil entre o final deste ano e o próximo?

Eu diria que há uma probabilidade de 25-30%. Existe risco, mas a âncora que tem que ser utilizada é a política fiscal. Controlando a dinâmica da dívida pública e retomando alguma agenda de reformas esse outlook negativo [da Fitch] não necessariamente será seguido.

Desde o início do ano, o EWZ [uma cesta de ações brasileiras negociada em Nova York] está em queda de 45%, enquanto o S&P cai 11%. Mas os preços em Wall Street parecem não refletir o que está acontecendo em Main Street. Esses – 11% podem estar errado, talvez o justo seja – 25%, – 30%. E no Brasil, com sua capacidade de fazer M, o – 45% ainda pode piorar. Como você vê isso?

Em relação aos EUA, quando você vai laminando o S&P por setor, você encontra setores com queda de 40-50%. O agregado esconde a realidade divergente entre setores. Eu estou do lado de alguns grandes investidores de cabelo branco, como o Howard Marks, que nunca viram um ciclo de bull para bear sem alguns repiques. Mas já cheguei à conclusão de que a realidade hoje é diferente. Ainda assim, tenho a impressão que ainda podemos ter downside no mercado americano. 

Em relação ao Brasil, uma coisa é o curtíssimo prazo e outra é o investimento em médio, longo prazo. Nossa orientação é sempre pensar numa carteira de 15, 20, 30 anos dependendo do objetivo da pessoa. Nesse caso, você não está operando o mercado, mas buscando oportunidades atrativas e baratas. Marcando a mercado, pode até estar pior daqui a um ou dois meses, mas temos que olhar num horizonte mais longo. 

Se vai ser – 45%, – 50%, – 52% no curto prazo, eu francamente não sei. Mas a compressão do preço dos ativos no mercado brasileiro é de certa maneira inconsistente com a perspectiva de crescimento de médio e longo prazo. É exatamente esse potencial de retorno que em algum momento vai se refletir e vai novamente trazer o Brasil para o radar do investidor estrangeiro.

Como é estar num mundo em que o livro-texto foi jogado pela janela?

Não foi. [risos] Fico pensando muito nisso… Quando eu fui aceito na Universidade de Chicago em setembro de 1979, o primeiro capítulo do livro que estava sendo adotado no primeiro curso de Teoria Monetária era sobre a Grande Depressão e mostrava a armadilha da liquidez [quando a política monetária perde força à medida que as taxas de juros se aproximam de zero]. Na época, eu olhava e pensava: ‘que perda de tempo esse livro, com tanta coisa interessante do Friedman, velocidade de circulação da moeda, expectativa…’ Mas hoje voltei a retirar esse livro da prateleira e lê-lo porque tem muita informação útil.

Ou seja, nas depressões todos os ortodoxos se tornam keynesianos?

Eu acho que na UTI o médico tem que fazer todo o possível para salvar o paciente. O choque que estamos vivendo — e eu tenho cicatrizes de combate de longa data — nunca vi nada igual. Eu sei precificar risco de um problema financeiro de 2008, eu consigo colocar um preço nisso. Mas hoje, nem os epidemiologistas estão de acordo. Então, como você pode ancorar algo dessa magnitude? Acho que sempre é melhor pecar fazendo mais, até porque a política monetária você pode reverter muito facilmente. E o segredo da política fiscal é você gerar aumento de despesas, mas não recorrente. Temos que reconhecer que houve um colapso da demanda agregada e que seu grande risco é de deflação, desemprego e de quebra e falência de empresas, e temos que atuar com armas nucleares. 

Mas essa premissa de que se você errar é sempre possível voltar atrás, não é bem assim. Na hora que você quiser tirar a rodinha, vão dizer que a economia ainda está fraca, que não pode tirar… Nunca vão voltar atrás. Estamos nessa desde 2008.

No Brasil, obviamente esse é o grande risco. E por isso insisto na frase de que não podemos transformar despesa extraordinária em gasto recorrente. Temos que ter muito cuidado. 

Mas o que eu aprendi sobre crises — e quem me disse isso foi o ex-presidente do Fed de Nova York, Gerald Corrigan — é que ‘numa crise financeira todas as escolhas são uma pior do que a outra.’ Precisamos escolher a menos pior, porque não decidir é o pior erro que se pode fazer como gestor.