Depois de concluir a leitura de “Amazon sem limites” (Editora Intrínseca, 512 páginas, R$ 69,90), olhei de relance para o Amazon Echo, um cilindro preto e lustroso pousado sobre o balcão da cozinha, bem ao lado de algumas latas de ração para cachorro que comprei na Amazon e tinham acabado de chegar. Em vez de enxergar o dispositivo, imaginei que diante de mim se encontrava o rosto do próprio Jeff Bezos, também lustroso, com uma careca perfeitamente lisa e o rosto bem bronzeado, olhando-me com serenidade sob o reluzente halo de LED.
Essa pequena alucinação fazia sentido porque ─ como descobrimos a partir do novo retrato da Amazon e de seu fundador feito por Brad Stone ─ Alexa, a voz que sai do meu Echo, é mais ou menos a encarnação do próprio Bezos. Ele pensou num alto-falante inteligente em janeiro de 2011, na era do Google Plus e do iPod Shuffle. Mandou um email para seus principais colaboradores naquele mês e declarou: “Deveríamos construir um dispositivo de US$ 20 com cérebro na nuvem e completamente controlado por voz.”
Depois disso, durante quase quatro anos, ele microgerenciou o projeto de um modo obsessivo, obrigando equipes em Atlanta e Gdansk a desenvolver um reconhecimento de fala impecável. Bezos implementou um protocolo surreal de testes que envolvia a contratação de funcionários temporários para ficar tagarelando durante dias em apartamentos vazios, conversando com aparelhos silenciosos, e criticou de maneira severa executivos que lhe disseram que levaria décadas para desenvolver o reconhecimento de fala. Levou para casa um dos primeiros protótipos do Echo. Quando, num momento de frustração, Bezos mandou a máquina “dar um tiro na própria cabeça”, os engenheiros que acompanhavam o teste entraram em pânico.
Segundo Stone, foi o próprio Bezos quem teve a ideia de colocar o anel de LED no topo do dispositivo e também quem pensou no nome “Alexa” (em homenagem à antiga biblioteca de Alexandria).
A nova obra de Stone é, à primeira vista, um livro de negócios que busca explicar a ascensão da empresa privada mais importante dos Estados Unidos, tão notável por seu gigantismo quanto por sua opacidade. Nesse sentido, é uma espécie de sequência de “A loja de tudo,” o best-seller de Stone publicado em 2013, que apresentou Bezos e explicou seu esforço incansável e obstinado para dominar o comércio online.
“Amazon sem limites” é particularmente esclarecedor quando explica como a empresa ganha dinheiro e como toma as decisões cotidianas que acabam tendo um grande efeito sobre os consumidores: valeria a pena, por exemplo, vender engradados com garrafas de água, produto de baixo custo e transporte caro?
Para Stone, momentos decisivos na história da Amazon, como o fracasso do Fire Phone e a ascensão da Amazon Web Services, sua plataforma de armazenamento em nuvem, impulsionaram o sucesso financeiro da empresa. É a história dos bastidores e que complementa a visão externa que Alec MacGillis esboçou recentemente no livro “Fulfillment”, um olhar sombrio sobre a forma como os Estados Unidos se tornaram atomizados pelo modelo econômico da Amazon.
Algumas vezes, porém, desejei um terceiro livro que fizesse uma ligação mais estreita entre as entranhas do rolo compressor e seus efeitos no mundo.
“Amazon sem limites” mostra como a empresa emprega cada vez mais seu poder contra possíveis rivais. Depois de adquirir um importante fabricante de robôs, por exemplo, ela parou de enviar as máquinas para os concorrentes ─ além de usar o imenso tesouro de dados obtidos de fornecedores terceirizados para fazer produtos concorrentes de “marca própria” e depois mentir sobre o assunto.
O livro também é, em grande medida, uma biografia de Bezos. E isso o torna oportuno já que a economia norte-americana está dominada por empresas gigantes lideradas por uma meia dúzia de indivíduos cujas personalidades e caprichos precisamos entender, gostemos ou não. A Amazon na década de 2010 foi um empreendimento personalíssimo, dirigido por um dos homens mais ricos do mundo, segundo seus desejos e refletindo sua personalidade. Bezos anunciou recentemente que deixará o cargo de CEO antes do fim do ano, embora também fique evidente que ele continuará a ter um papel de liderança como presidente executivo.
Como biografia, o livro é limitado e, ao mesmo tempo, fortalecido pelo fato de Stone ter perdido seu antigo acesso a Bezos, a quem ele teve a chance de entrevistar para “A loja de tudo”. O autor escreve que descobriu depois que o CEO ficou com raiva porque ele rastreou seu pai biológico na época. (MacKenzie Scott, esposa de Bezos na época, deu uma única estrela para “A loja de tudo” numa resenha na Amazon.)
Existe um velho ditado jornalístico que diz que o acesso é uma maldição, porque coloca o autor em dívida com a fonte e o aproxima demais da pessoa que está sendo investigada. É seguro dizer que “Amazon sem limites” às vezes sofre pela falta de uma maior percepção da psicologia de Bezos.
Mas o livro, ao mesmo tempo, se beneficia do distanciamento do autor, tornando-se um passeio consistente e por vezes saboroso pelo império construído por Bezos. Como a Alexa, a Amazon, enquanto negócio, parece incorporar algumas das melhores virtudes pessoais de Bezos (seu empenho implacável para entregar o pacote a tempo), bem como seus piores defeitos (uma “crueldade informal” que define a cultura da empresa e exige que seus trabalhadores e executivos façam sacrifícios pessoais para suprir as necessidades corporativas).
Na Amazon, quase todas as grandes decisões se resolvem numa reunião com Bezos, quando seus subordinados prendem a respiração, genuinamente sem saber se suas propostas serão rasgadas e eles, repreendidos, ou se o valor destinado a seus projetos será dobrado.
Algumas das fixações de Bezos são visionárias, como a determinação em criar um alto-falante inteligente. Outras são peculiares: depois de ler que um único hambúrguer pode conter carne de uma centena de animais diferentes, ele decidiu que a novíssima mercearia da Amazon se destacaria por oferecer um “hambúrguer de uma única vaca”. Assim que a equipe compreendeu que não era uma piada, começou a trabalhar. Alguns meses depois, o gerente de produto recebeu outro email de Bezos: ele estava com problemas para abrir a embalagem e o hambúrguer tinha soltado gordura demais na grelha.
Como escreve Stone, tratava-se de “um estilo diferente de inovação”, no qual os funcionários “trabalhavam do fim para o início a partir da intuição de Bezos e para satisfazer seus gostos por vezes [literalmente] ecléticos.”
Numa escala bem mais ampla, o livro resolve alguns dos mistérios por trás do fiasco do HQ2 da Amazon, quando a empresa anunciou planos de construir um gigantesco complexo de escritórios no Queens e depois voltou atrás em face da oposição local.
O fato de a cidade de Nova York ter entrado no leque de possibilidades foi resultado de uma decisão de Bezos, que descartou meses de estudos cuidadosos ─ que restringiam as opções a Chicago, Filadélfia e Raleigh ─ e resolveu seguir sua intuição.
Um dos acréscimos de última hora ao projeto ─ símbolo máximo da ganância corporativa para seus opositores locais ─ foi a instalação de helipontos. O próprio Bezos detestara helicópteros no passado, mas de repente eles começaram a surgir em todos os projetos. E foi durante esse período que ele se aproximou de uma ex-atriz chamada Lauren Sanchez, piloto carismática que dirigia uma empresa de aviação na época.
O lado mais humano de Bezos vem à tona nos trechos em que Stone descreve como ele se apaixonou por Sanchez, jogando a cautela ao vento e cortejando-a de forma tão pública que tinha certeza de que seria pego em flagrante. O autor tem os incríveis e-mails entre um repórter do National Enquirer e sua fonte, que primeiro prometeu expor a relação entre uma “atriz casada do segundo escalão” e alguém “tipo Bill Gates”. A fonte era ninguém menos do que o próprio irmão de Sanchez, um personagem controverso que jogou em todas as posições e insistiu até o fim que “nunca trairia ninguém.”
Portanto, é difícil não torcer por Bezos quando, encurralado pelo The Enquirer, ele induz a publicação a lhe enviar uma carta ameaçadora ─ e depois, descaradamente, a publica, expondo ele mesmo o escândalo.
Mas Bezos não é uma vítima comum da extorsão dos tabloides. Ele é o homem mais rico do mundo e recentemente se tornou um campeão da “Verdade” e da “Democracia” ─ assim mesmo, em letras maiúsculas ─ ao salvar o Washington Post.
Bezos especulou publicamente sobre os possíveis motivos políticos por trás da revelação de seu caso amoroso, segundo Stone, e tentou desviar a atenção do sensacionalismo barato, transferindo-a para o assassinato brutal do colunista Jamal Khashoggi. A compra do jornal, como o próprio Bezos chegou a escrever, trouxe mais complexidade à sua vida pública, fazendo com que “pessoas poderosas” o considerassem um “inimigo”.
O relato de Stone mostra que isso era, na melhor das hipóteses, uma paranoia razoável e, na pior, um ato cínico de relações públicas, tirando partido do assassinato de um jornalista para desviar a atenção do escândalo de tabloide. Seu “sentimento nobre”, Stone comenta de forma seca, “tinha pouca relação com sua conduta aberta de um relacionamento extraconjugal que já durava um ano”.
Bezos será sempre protegido pela riqueza e pelo poder, mas também há outro lado a considerar: a riqueza e o poder podem também macular qualquer coisa que ele toca.
Ben Smith é colunista de mídia do The New York Times.
Este artigo foi publicado pelo Times e licenciado pelo Brazil Journal.
A tradução é de Livia de Almeida.