Em fevereiro de 1922, a única obra publicada de Oswald de Andrade era um livro com duas peças de teatro em francês, escritas em parceria com Guilherme de Almeida. Até então, Mário de Andrade havia lançado apenas uma coletânea de poemas muito convencionais (e muito ruins, na avaliação sincera de seu amigo Manuel Bandeira), que assinou com o pseudônimo de Mário Sobral.

A despeito dessa pobreza bibliográfica, Oswald e Mário julgaram-se aptos a promover um festival de arte, música e literatura que pretendia arejar e atualizar o cenário artístico de São Paulo – e do Brasil.

Esse é um fato que facilmente se perde de vista agora que a centenária Semana de Arte Moderna é universalmente reconhecida como um marco da cultura brasileira: em sua maioria, os artistas que dela participaram estavam na fase inicial da carreira e pouco haviam feito de realmente inovador.

Esse era o nível de ousadia – ou empáfia – da primeira geração modernista, cuja aventura intelectual está muito bem narrada em Semana de 22 – Antes do Começo, Depois do Fim (Estação Brasil; 640 páginas), de José de Nicola e Lucas de Nicola.

Os dois pesquisadores – José com formação em Letras; Lucas, em História – revisaram a produção literária e os jornais do período, entre outras fontes, para reconstituir a “fase heróica” do movimento que aspirava construir uma nova arte nacional, em dia com as vanguardas européias e afinada à era dinâmica e cambiante do telefone e do automóvel.

O livro apresenta um relato matizado da consolidação do modernismo em São Paulo. Mostra que o movimento enfrentou uma dura resistência conservadora, mas também teve certo respaldo cultural e político. Um importante canal de divulgação foi o Correio Paulistano, jornal do Partido Republicano Paulista, que tinha entre seus colunistas o poeta Menotti del Picchia, defensor inflamado da nova literatura.

Antes da Semana, o choque mais famoso com a crítica retrógrada se deu na exposição de pintura de Anita Malfatti, em 1917, atacada por Monteiro Lobato. O futuro criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo chegou a comparar a arte moderna aos “desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios” (o paralelo entre modernismo e distúrbios psiquiátricos foi um lugar-comum da época). Mas Lobato, como editor, publicou obras modernistas e até frequentava a garçonnière de Oswald de Andrade no centro de São Paulo.

José e Lucas de Nicola demonstram que havia estratégia promocional na ação dos modernistas (ou futuristas, como muitos diziam então, para desespero de Mário de Andrade, que não gostava de ser associado ao futurismo do italiano Filippo Marinetti).

Isso explica a participação de Graça Aranha na Semana: o autor de Canaã tinha pouco a ver com o ideário da nova geração, mas trazia prestígio ao grupo. Aranha também foi essencial para aproximar os modernos do empresário e historiador Paulo Prado, principal financiador do evento no Theatro Municipal.

A Semana de Arte Moderna foi atacada por parte da imprensa, mas transcorreu em relativa tranquilidade, salvo na noite dedicada à poesia – a gritaria da plateia foi grande quando o poeta carioca Ronald de Carvalho leu Os Sapos, um poema de Manuel Bandeira que debocha da poesia parnasiana.

O episódio mais pitoresco se deu na última noite, quando Heitor Villa-Lobos apareceu para apresentar suas composições vestido a rigor, como se espera de um maestro, mas calçando sapato em um pé e chinelo no outro. (Ao contrário do que muitos pensaram, não se tratava de provocação “futurista,” mas de um prosaico pé inflamado.)

Neste centenário da Semana, já se começam a publicar obras que revisam criticamente o lugar central conferido ao modernismo paulista na história da cultura brasileira. Este livro, no entanto, segue o caminho oposto: é nítida a admiração dos autores por seus personagens (em especial, por Mário de Andrade).

Com texto e imagens – a pesquisa iconográfica é excelente –, José e Lucas de Nicola conseguem transmitir a vibração de um tempo em que a liberdade artística prometia ser ilimitada e permitia o vislumbre (ilusório?) de um Brasil moderno.

Na foto acima, alguns expoentes do modernismo em um almoço de homenagem a Paulo Prado, em 1924. Bem na frente, sentado no chão, Oswald de Andrade; de pé, à esquerda das cadeiras, de terno escuro e óculos, Mário de Andrade; de pé, à esquerda no segundo degrau, de óculos e gravata borboleta, Manuel Bandeira. Paulo Prado é o homem de bigode escuro no centro da foto; à sua direita, Graça Aranha.