Negro, gay, baiano e pobre, o artista plástico Emanoel Araújo viveu muitas vidas.
Foi escultor, pintor, desenhista, ilustrador, figurinista, cenógrafo, professor, curador, museólogo — além de ter sido o maior responsável pela transformação da Pinacoteca do Estado de São Paulo nos anos 90 e pela criação do Museu Afro Brasil, no Parque Ibirapuera.
Quando morreu no ano passado, aos 81 anos, o artista deixou uma vasta coleção de 5 mil obras, incluindo peças de Francisco Brennand, Rubem Valentim e Siron Franco. Agora, o acervo de Emanoel — que destaca a produção de artistas negros — também vai ganhar uma nova vida.
Na semana passada, a fundação criada pela filantropa Lia Maria do Aguiar — uma das três filhas adotivas de Amador Aguiar, o fundador do Bradesco — pagou R$ 30 milhões para arrematar a coleção e planeja criar um museu para receber o acervo.
O desejo de Emanoel era que seu acervo pessoal tivesse um destino público. “Os herdeiros decidiram vender a coleção em sua totalidade, com a condição que fosse mantida sua unidade,” disse Jones Bergamin, o “Peninha”, o fundador da Bolsa de Arte, que organizou a venda.
O leilão foi o segundo maior da Bolsa de Arte, desde a venda de A Caipirinha de Tarsila do Amaral em 2020 por R$ 57,5 milhões. Mas Peninha disse que “só a fundação teve a visão de fazer esta aposta” na coleção de Emanoel.
“Ao mesmo tempo em que estou feliz, estou frustrado, porque esse leilão mostra uma certa rejeição ao Emanoel. Quando ele era vivo, ele era um homem poderoso e respeitado. Agora, não apareceu nenhum outro bid. Essa coleção – amealhada ao longo de 50, 60 anos – merecia ter múltiplas ofertas. Era pra ter atraído instituições, museus, mas eles sequer foram lá ver.”
Criada em 2008 em Campos de Jordão, a Fundação Lia Maria Aguiar financia programas em cultura, artes e educação e atende cerca de 700 crianças e adolescentes com cursos de música, dança e teatro.
Em 2021, Lia doou cerca de R$ 900 milhões em ações do Bradesco para criar o fundo patrimonial da fundação, seguindo um modelo de endowment para o financiamento da instituição ao longo do tempo.
A aquisição do acervo foi uma oportunidade que ia ao encontro do ambicioso plano de expansão da fundação, que está construindo em Campos de Jordão o maior museu de carros históricos da América Latina, previsto para ser inaugurado em junho de 2024.
Batizado de CARDE (acrônimo de carro, arte, design e educação), o futuro museu ocupará um edifício de 5.400 metros quadrados e terá 500 automóveis considerados históricos em seu acervo.
O exemplar mais antigo da coleção é um De Dion Bouton 1902 (o primeiro veículo matriculado no Brasil), mas contará também com itens raros como um Isotta Fraschini 8A Cabriolet D’Orsay, um Cord 812 Supercharger Sedan, e um Lincoln Modelo K 1938.
Ao custo de R$ 60 milhões, a proposta do CARDE é contar a história brasileira através do automóvel, num espaço imersivo e multimídia. A curadoria do museu é do arquiteto Gringo Cardia, autor do Museu da Cruz Vermelha, em Genebra, e do museu da Casa Jorge Amado, em Salvador, entre outros. A professora Heloísa Starling participa com a historiografia do projeto.
Cardia também estará à frente da curadoria do museu que abrigará o acervo de Emanoel Araújo, que será instalado no mesmo parque do CARDE.
Trata-se de uma área total de quase 1 milhão de metros quadrados em Campos do Jordão, formada a partir de um terreno de 150 mil metros que pertencia a Lia Maria e de uma gleba vizinha de 800 mil metros comprada recentemente por R$ 27 milhões.
“Será um um grande parque socioeducacional, onde haverá a parte de ensino formal, uma área de preservação ambiental e museus interativos para promover o aprendizado de história, arte e cultura,” Luiz Goshima, o diretor da fundação, disse ao Brazil Journal.
“Inhotim é uma grande referência para nós, pois queremos criar um espaço aberto e democrático, que permitirá múltiplas possibilidades seja para um público erudito, seja para quem deseja apenas passear no local,” disse Goshima.
Assim como a proposta do CARDE, o novo museu quer destacar a história da formação do povo brasileiro por meio de obras e objetos. Não tem nome definido, mas, segundo Goshima, poderia ser o “museu da origem e da cultura do povo brasileiro.”
“A ideia é mostrar o olhar especial de Emanoel Araújo sobre a cultura e a arte,” disse Gringo Cardia. “É uma coleção muito importante e espero que este projeto inspire outras pessoas.”
A expectativa é que o novo museu abra as portas em 2027.