Com a fina ironia que lhe é peculiar, Antonio Delfim Netto me disse certa vez — do alto de sua tripla trajetória de intelectual, ministro e parlamentar de vários mandatos: “Seu problema, Giambiagi, é que você apela muito para a lógica. A pior coisa para convencer alguém a votar a favor de algo no Congresso é a lógica!” 

Aceitei, com bom humor e humildemente, como o sábio conselho de alguém que, quando eu ainda estava indo, já tinha várias idas e voltas na vida. 

Não obstante isso, sigo convencido de que argumentos bem expostos cumprem a sua função na batalha das ideias. Às vezes, a vitória chega um pouco tarde. Roberto Campos passou a vida inteira tentando mostrar os equívocos do socialismo, para poder sentir o sabor da recompensa com a queda do muro de Berlim já perto do final da sua vida. 

Eu, muito mais modestamente, fiquei mais de 25 anos pregando a reforma da Previdência, até ela se tornar realidade, ainda que parcialmente, em 2019. 

Nas finanças públicas, outra área de minha dedicação profissional, o desafio está longe de ter sido vencido. Por isso, estou lançando “Tudo sobre o déficit público” (Editora Alta Books, 352 páginas, R$ 59,90) com a intenção de tentar influenciar o debate sobre a questão fiscal para as eleições de 2022. Parodiando o poeta, persistir é preciso.
 
Creio que, junto com Raul Velloso e Marcos Mendes, devo ter um dos arquivos pessoais de finanças públicas mais completos em matéria de dados. 
 
Prestes a fazer 60 anos, decidi compartilhar não só um pouco do que aprendi sobre nossas combalidas finanças públicas nos 35 anos de dedicação ao tema, desde minhas incursões iniciais na seara, como também esses 30 anos de estatísticas fiscais 1991/2020, incluindo um detalhado apêndice estatístico sobre o período.
 
Ao comparar o Brasil de hoje com aquele do começo dos anos 80, estamos melhor em vários aspectos. Em particular, deixamos de ser um grande devedor externo para ser um país com “dívida líquida negativa”, quando nossas reservas se tornaram maiores que a dívida externa bruta; a inflação – em que pese o aumento recente –  é “civilizada” vis-à-vis as taxas pornográficas com as quais minha geração chegou a conviver, de 60% ou 70% ao mês; e, após mais de 25 anos de taxas reais elevadíssimas, temos uma Selic que não faz feio diante das taxas definidas pelos Bancos Centrais dos países mais importantes do mundo.
 
Em matéria fiscal, porém, nossa realidade deixa muito a desejar. Não só porque temos uma dívida bruta que não pára de aumentar como proporção do PIB há quase dez anos; nem também porque este ano estamos a caminho de ter um déficit público entre 6% e 7% do PIB; mas, principalmente, porque estamos a léguas de alcançar um grau de compreensão do problema, por parte da opinião pública, que gere a necessária pressão sobre os governantes para dar conta da questão. 

Resumo o resultado de nossos descaminhos exposto no livro: em 1991, a soma dos grandes agregados de despesa primária do Governo Central (com transferências a Estados e Municípios, pessoal, INSS e demais gastos) foi de 14% do PIB, em números arredondados. Em 2021, deverá ser de 22% do PIB. Aqui, vale lembrar a frase de Newton: “Je ne dis rien; je ne propose rien; j’expose”. 

Minha modesta percepção é que, no final da estrada que percorri explicando a questão, minha reverência à “Sua Excelência, o Fato” (como dizia Ulysses Guimarães) me deixou, de certa forma, sozinho na estrada. 

Aos grupos situados na geografia política à “esquerda”, incomoda minha “defesa do neoliberalismo,” porque esses grupos políticos não querem saber de fazer qualquer ajuste (“não se curvar à lógica do FMI”).

Já o polo oposto, que muitas vezes vê o Estado com enorme desconfiança, associando-o automaticamente à defesa de “privilégios”, “empreguismo” ou males similares, tende a fechar um olho quando aponto o fato de que os funcionários públicos ativos – os eternos “culpados”, para essa corrente – eram responsáveis por uma despesa de 2,7% do PIB em 1991 – e representarão 2,0% do PIB em 2021.

Ora, se em 30 anos a despesa total aumentou em termos relativos mais de 50% seu peso no PIB, ao mesmo tempo em que, também em termos relativos, a despesa com pessoal do Governo Central na ativa caiu mais de 25% como fração do PIB, a responsabilidade pelo nosso descalabro fiscal precisa ser procurada em outras áreas, numa visão retrospectiva longa.
 
E aqui reside o principal problema com o qual o País se defronta: a dificuldade de entender a questão do desequilíbrio fiscal como um divórcio entre pretensões e possibilidades – e não necessariamente como a expressão de uma iniquidade.

Nos acostumamos a entender as grandes questões políticas como expressão de grandes pecados: corrupção, privilégios, desvios etc. A realidade é, ao mesmo tempo, mais complexa e mais simples.

Mais complexa, porque não se trata de identificar mocinhos e bandidos como em um filme, havendo nuances relevantes a considerar. Mais simples, porque, no fundo, há que se expor os números e mostrar uma inconsistência entre o que o país almeja – ao somar todas as demandas por despesas – e aquilo que  está disposto a pagar através dos tributos. Essa conta não fecha.
 
Não estamos na presença de um vilão, como funcionários públicos na ativa que ganham cada vez mais; juros que consomem 10% do PIB. O gasto com funcionários públicos na ativa pesa hoje menos que há 30 anos; e a despesa de juros já foi muito maior. Ainda assim, temos uma séria inconsistência entre receitas e despesas. 
 
Pelo lado da receita, embora exista um discurso dominante de que “o brasileiro é cada vez mais taxado”, isso não condiz com a realidade dos últimos anos. Mesmo considerando médias de cinco anos e com todos os ajustes recomendados para expurgar elementos completamente anômalos da receita – como a capitalização da Petrobras – a receita bruta do Governo Central caiu de uma média de 22,1% do PIB durante 2009/2013, para 20,9% do PIB nos cinco anos em 2016/2020. É um ponto de atenção a ser observado.
 
Pelo lado da despesa, temos itens relevantes, que vão desde o principal gasto, com o INSS, previsto em mais de 8% do PIB em 2021, até os gastos com o Bolsa Família, da ordem de 0,5% do PIB, passando por despesas, por exemplo, com seguro-desemprego e LOAS, na faixa de 0,7% a 0,8% do PIB, cada; e outras menores, como o Fundeb, sentenças judiciais, despesas obrigatórias com saúde e educação, etc. Cada uma das rubricas é legítima e inteiramente justificável, do ponto de vista social, mas no conjunto levam a um desequilíbrio que, no contexto de uma economia inserida no mundo, chama a atenção.
 
Em 2013, ano das grandes manifestações contra a qualidade dos serviços prestados pelo Estado, a dívida pública bruta era de 52% do PIB, e escalara para 70% do PIB em 2016, quando, justamente para conter esse processo, foi aprovado o chamado “teto de gastos”.

Naquele ano, o Governo Central exibiu um déficit primário – sem contar os juros, portanto – de 2,5% do PIB. Em 2021, cinco anos depois da nova regra, a dívida bruta é de mais de 80% do PIB; em 2022 vamos para o nono ano consecutivo de déficit primário – e estamos pensando em abandonar alegremente a regra de controle do gasto.

A mudança da regra será inevitável em 2023, porém, é preciso que seja substituída por outra regra de controle rígido do gasto, e que faça sentido – e não por um salvo-conduto de laissez-faire, laissez-passer para todo tipo de despesa. 
 
Em outras palavras, precisamos dar às nossas finanças públicas um horizonte de sustentabilidade realista – e não uma sustentabilidade baseada em premissas quiméricas de desempenho da economia. 
 
É a esse debate que o livro se destina – e apresento algumas ideias acerca do que fazer para enquadrar as finanças públicas. O essencial, o que não dá para protelar indefinidamente, como se a realidade não tivesse limites, é a definição política para combater o desequilíbrio das finanças públicas com firmeza, método, inteligência e perseverança.

Tomada essa atitude, de um jeito ou de outro, a questão fiscal será endereçada. Se continuarmos a tentar “driblar” nossos problemas, iremos perder definitivamente o bonde da História – e, nesse caso, R$5 será um preço muito barato para a cotação do dólar.

Fabio Giambiagi é economista e pesquisador associado da FGV/IBRE.