A criatividade para contornar as regras fiscais contribui para a distribuição de privilégios aos lobbies, e a conta será paga anos à frente. São muitos os exemplos.

Um caso recente é a medida que permite a uma empresa estatal, a EMGEA (Empresa Gestora de Ativos), comprar créditos imobiliários concedidos por instituições financeiras.  O objetivo é ampliar a oferta de crédito imobiliário ao permitir que os players do setor (como a Caixa) reciclem seu capital tendo como contraparte um ente federal.

A Câmara dos Deputados aprovou o PL 1.725/2024, inicialmente proposto na MP 1213/24, e o tema está atualmente sob análise do Senado.

Neste PL está contida a transformação da EMGEA em securitizadora de empréstimos imobiliários, como já comentamos no Brazil Journal. A forma como isto está sendo proposto pode resultar em problemas nos próximos anos.

A EMGEA está sendo autorizada a comprar crédito imobiliário de instituições financeiras, “empacotá-los” e vendê-los a terceiros, assumindo o risco de crédito.

A “securitização” permitida é criativa, pois os investidores comprarão títulos cuja remuneração poderá não depender dos créditos imobiliários adquiridos pela EMGEA.

Ficamos assim: bancos (com créditos, por vezes, com alto risco de inadimplência) podem vender seus ativos para uma empresa inteiramente controlada pelo Estado.

A EMGEA vende a investidores títulos que deveriam estar associados aos créditos imobiliários adquiridos. Porém, a lei permite não ser bem assim. A remuneração desses títulos pode ser descasada do crédito adquirido.

Se os devedores do crédito imobiliário não pagarem os seus financiamentos, os investidores podem continuar a receber o seu crédito devidamente remunerado. O prejuízo fica para a EMGEA. Ou seja, para o erário, que é o dono da EMGEA. Isso é: todos nós.

As garantias da EMGEA (para o caso de os mutuários não pagarem suas dívidas) seriam os imóveis associados aos financiamentos. Isso em um País em que não é simples desalojar um mutuário inadimplente, mesmo com as melhorias recentes da legislação.

Ao contrário do texto original da MP, o PL contém uma série de “exigências” para que a EMGEA adote “práticas robustas de governança”. Essas exigências parecem “uma homenagem que o vício presta à virtude,” na frase clássica de La Rochefoucauld.

As operações poderão ser iniciadas imediatamente. Sabe-se lá quando ocorrerá a construção da “governança robusta”.

A lei deveria, no mínimo, submeter a EMGEA à mesma supervisão feita nas instituições financeiras, inclusive a provisão para perdas esperadas. Afinal, ela irá operar no mercado de crédito, com riscos de inadimplência ou de descasamento das taxas de juros. 

Os gestores da EMGEA e de qualquer outra instituição pública que viessem a assumir tais riscos deveriam estar sujeitos às mesmas penalidades e restrições impostas aos demais gestores de instituições financeiras. Isso inclui o bloqueio do seu patrimônio pessoal caso as operações realizadas resultem em perdas significativas.

As benesses para investidores do setor imobiliário não param por aí.

Segundo a imprensa, existe proposta da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (PREVIC), o órgão regulador dos fundos de pensão, para que estas entidades voltem a investir em imóveis.

Os fundos de pensão das estatais, sempre sob influência do governo, se tornariam potenciais compradores dos créditos empacotados pela EMGEA.

Esses mecanismos são apenas alguns dos exemplos da criatividade recente para permitir ao Poder Público prover benefícios por fora do orçamento da União.

O PL 1.725/24, que regulamenta as novas atividades da EMGEA, permite igualmente conceder hedge cambial a partir do Fundo Clima, operado pelo BNDES.

Esse Fundo é abastecido por recursos de emissão de dívida do Tesouro no exterior, que não impacta o resultado primário. Parte dos recursos poderá ser utilizada para prover seguro contra variações da taxa de câmbio a investidores externos (hedge cambial).

A engenharia financeira proposta é complexa, envolvendo até a possibilidade de o Banco Central adquirir derivativos cambiais de organismos multilaterais e repassá-los a instituições financeiras. Mais uma vez, o Erário passa a pagar a conta de riscos assumidos pelo setor privado.

Essa operação complexa ficará sob a responsabilidade de um Comitê Executivo. Assim como no caso da EMGEA, perguntamos qual a responsabilidade dos gestores desse Comitê por eventuais prejuízos para o setor público.

Vale lembrar o caso do Fundo Soberano do Brasil, criado em 2008 com objetivos ambiciosos e mecanismos intricados. O Fundo foi extinto em 2019 depois de acumular R$ 7 bilhões em prejuízos (em valores da época), não tendo atingido qualquer dos seus objetivos. Quem pagou a conta?

Há bem mais no PL 1.725/24 do que a concessão de benesses para investidores do setor imobiliário. A lei também prevê a garantia para empréstimos subsidiados a diversos grupos, como as famílias do Cadastro Único e os microempreendedores individuais. 

O principal provedor das garantias a esses empréstimos é o FGO (Fundo Garantidor de Operações), um fundo privado constituído com recursos do Tesouro. O PL autoriza que pessoas jurídicas de direito público possam vir a ser cotistas do FGO. Empresas estatais e bancos públicos poderão aportar recursos, sem que isso impacte o resultado fiscal da União.

Isso significa dinheiro para políticas públicas sem transitar pelo Orçamento.

As empresas estatais, que recebem recursos do orçamento fiscal mas operam com mais liberdade que a administração direta, parecem estar com rédeas soltas.

De janeiro a julho de 2022, tinham obtido um superávit de R$ 7,6 bilhões. E agora, de janeiro a julho de 2024, esse resultado reverteu para um déficit de R$ 2,3 bilhões, segundo dados do Banco Central.

Este é mais um sinal de que os analistas de política fiscal terão que ampliar suas análises para além das contas do orçamento fiscal e da seguridade social. O parafiscal está sendo acelerado.

É necessário analisar com maior detalhe o que está ocorrendo nas estatais. Mas já aparecem notícias preocupantes, como a suspeita de prática de pedaladas nas despesas da ressuscitada Telebras  e decisões questionáveis, como a dos Correios, que resolveu cobrir o desequilíbrio do fundo de pensão dos seus empregados. 

Os desembolsos do BNDES voltaram a crescer, com uma previsão de atingir 1,3% do PIB em 2024, frente a 0,7% em 2021. Ainda estão longe dos 4,3% atingidos em 2010, mas voltaram a aumentar.

Parte do funding está vindo de fundos públicos, como o já citado Fundo Clima, o Fundo Social e o da Marinha Mercante.

Com a possibilidade de captar recursos próprios – usando a recém-aprovada Letra de Crédito de Desenvolvimento, isenta de impostos – o BNDES se descolará do Tesouro e terá ainda maior poder de expansão.

A Finep, que também opera financiamentos a partir de fundos públicos, catapultou as suas operações de R$ 2,7 bilhões em 2021 para R$ 13,4 bilhões em 2023.

Tudo isso é impulso parafiscal: recursos públicos correndo por fora do Orçamento da União.

Em outro artigo, um dos autores já listou os mecanismos de drible nas regras fiscais que estão em curso: despesas retiradas da conta do superávit primário, como a bolsa do ensino médio, parte dos precatórios e o auxílio gás; aumento de despesas financeiras com repasses dos fundos para empréstimos subsidiados; além de crédito extraordinário (que não impacta as metas fiscais) para abastecer fundos extraorçamentários.

A Ministra do Meio Ambiente propôs retirar do teto de gastos a despesa com o controle das queimadas, e está tendo suporte do Ministro Flávio Dino, do STF. A cada urgência, mais gastos fora da regra.

Enquanto isso, continua a interdição política de se discutir reformas para reduzir a despesa obrigatória e abrir espaço para despesas essenciais, como a de prevenção e preservação ambiental.

Mais fácil continuar gastando e driblar as regras, se valendo de receitas não-recorrentes para arcar com despesas permanentes, além de retomar as distorções nas estatísticas fiscais.

O Governo decidiu transferir para o Tesouro recursos esquecidos em contas correntes no sistema financeiro. Uma decisão questionável em seu mérito, porque constitui apropriação de bens privados. Mas, além disso, decidiu computar esses estimados R$ 8 bilhões como receita primária.

 O Banco Central argumentou que tecnicamente não se pode registrá-la como receita primária, pois não se trata de uma transação ordinária entre os setores público e privado (como um aumento de tributos, por exemplo), mas sim uma transferência patrimonial. 

Por isso, deveria impactar apenas a dívida pública, reduzindo-a, sem que a receita fosse computada no fluxo fiscal.

Com dificuldades para cumprir a meta de resultado primário, o governo insistiu no cômputo da receita, e chegou-se a uma fórmula estranha: o BC não registra a receita como primária, mas o Tesouro sim. E para fins de cumprimento de metas fiscais, vale o registro do Tesouro. Gol de mão.

Vale lembrar que, em 2023, houve caso semelhante, quando da apropriação pelo Tesouro de recursos do PIS/PASEP. Naquele caso, no entanto, prevaleceu para fins de cômputo da meta fiscal o registro feito pelo Banco Central.

Temos, ainda, mais uma rodada de renegociação de dívida dos estados, cujo custo para a União, na casa de R$ 50 bilhões por ano, não vai transitar pelo resultado primário.

Durante o Governo Dilma, manobras para mascarar o crescimento da dívida líquida resultaram nesta perda de credibilidade, e os analistas passaram a acompanhar apenas a evolução da dívida bruta. 

Parece que o resultado primário e o limite ao crescimento dos gastos públicos – duas métricas centrais do arcabouço fiscal – estão perdendo credibilidade por razões semelhantes.

Marcos Lisboa e Marcos Mendes são economistas.