Começo com a ressalva de praxe, a de que este texto reflete as minhas opiniões pessoais e não necessariamente a posição institucional da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), onde atuo como diretor desde 2020.

Nesta semana, a CVM e o mercado de capitais receberam a confirmação de uma notícia lamentável vinda de Brasília. Refiro-me ao orçamento para a CVM em 2022, no valor quase surreal de R$ 12,7 milhões.

Isso mesmo. Para a execução do seu mandato legal de regulação de mais de 70 mil participantes, o regulador tem à sua disposição um orçamento mensal de pouco mais de R$ 1 milhão. O quadro é crítico; as atividades de supervisão e fiscalização estão em xeque.

Ignorou-se por completo que o Brasil conta hoje com um mercado de capitais pujante. O número de pessoas físicas na Bolsa explodiu; vimos nascer nos últimos anos toda uma indústria de agentes autônomos; surgiram diversas novas corretoras e plataformas de investimento, com intenso apelo tecnológico; o patrimônio líquido dos fundos de investimento é praticamente equivalente ao PIB de todo o País; e temos agora o dobro de participantes regulados do que tínhamos há poucos anos.

Todavia, na contramão desse cenário aquecido, o universo político de Brasília vem impondo à CVM um esvaziamento orçamentário agressivo e contínuo, dificultando sobremaneira o exercício das atividades regulatórias.  E isso não é de hoje. Esse ‘quase apagão’ já se tornou uma realidade diária para a CVM ao longo dos últimos 10 anos.

Todos compreendem as dificuldades inerentes às escolhas que devem ser feitas pelo Legislativo no contexto da elaboração do orçamento da União. Mas, especificamente no que diz respeito ao montante reservado à CVM, trata-se de uma escolha irracional, que não faz sentido por diversos motivos. Aponto apenas dois deles.

Primeiro: trata-se de uma opção que prejudica um ambiente de negócios de extrema relevância para o desenvolvimento econômico e social do Brasil. A existência de um mercado de capitais que possa atingir esses objetivos – gerar riqueza, impostos e empregos – pressupõe a existência de um regulador forte, e não fraco.

Segundo: a CVM é superavitária. Geramos muito mais receitas do que despesas – há bastante tempo, e de forma consistente. Hoje, só as taxas de fiscalização pagas pelos participantes do mercado somam mais que o dobro de todas as despesas da autarquia.

Ocorre que tais taxas não são pagas à CVM, apesar de a justificativa prevista em lei mencionar expressamente as atividades do regulador como fato gerador das taxas. É o equivalente a impedir que os valores da taxa de incêndio cheguem ao Corpo de Bombeiros.

Em outras palavras, as taxas deveriam ser pagas à CVM, mas quem as recebe é a União, que não as repassa à autarquia.

É por isso que temos esse descolamento grosseiro entre o mercado regulado e o orçamento do regulador. Caso consigamos estabelecer a vinculação das taxas ao propósito para a qual foram criadas, talvez tenhamos um ângulo para a possível resolução do problema – que, dada a relevância e urgência do tema, poderia ser corrigido por meio de Medida Provisória.

Aos olhos da iniciativa privada, no Brasil e no exterior, há um claro reconhecimento de que a CVM desempenha com rigor técnico as suas atribuições. Praticamente um milagre. Isso só ocorre em virtude da qualidade e dedicação de seu quadro de servidores.

Como a lei e a regulação não são ciência exata, é possível discordar no mérito de decisões das áreas técnicas ou do Colegiado. Eu mesmo o faço, vez ou outra. Mas nunca tenho dúvida de que as posições da autarquia são construídas a partir do entendimento legítimo e da boa fé de seus servidores e membros do Colegiado.

Escrevo sobre este tema — pedindo a atenção de Brasília — porque tenho um carinho especial pela CVM. Iniciei minha carreira como estagiário do Colegiado e, depois de 20 anos trabalhando no mercado, deixei meu escritório e uma carreira confortável no setor privado para servir como Diretor. Um enorme sacrifício, mas uma honra sem tamanho.

É fundamental que continuemos a contar com uma CVM com credibilidade e dotada dos recursos necessários para continuar seu trabalho de excelência – com a vinculação das taxas de regulação ao regulador – sob pena de um retrocesso institucional que custará caro não só ao mercado de capitais mas a todo o País.

ADENDO em 27/1: Após a publicação deste artigo, a Junta de Execução Orçamentária publicou decisão atendendo quase integralmente o orçamento proposto pela CVM para 2022 (um montante comedido, coerente com a realidade fiscal e econômica do País; mas que ao mesmo tempo viabiliza as atividades da autarquia neste ano). Mérito das interações institucionais da CVM, trata-se de uma excelente conquista, mas restrita a 2022. Por esse motivo, voltando ao tema central do artigo, caso não haja a vinculação das taxas de fiscalização à autarquia, nos próximos anos estaremos sujeitos à continuidade do esvaziamento que vem ocorrendo há 10 anos. A reflexão, pois, continua atual e relevante.

Alexandre Costa Rangel é Diretor da CVM.