Depois de alguns anos de atraso, foi aprovada a primeira fase da revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo. O debate a respeito da sua revisão, um tanto morno ao longo das audiências, pegou fogo na apresentação da última minuta pelo relator na Câmara Municipal que, segundo críticos, não teria representado as ideias discutidas ao longo do processo de revisão.
O Plano Diretor vigente se propôs a “reorganizar” o adensamento construtivo da cidade em torno dos “Eixos de Estruturação da Transformação Urbana”. No PDE se definiu que a cidade construiria mais nas áreas próximas à infraestrutura de transporte de massa existente. Estabeleceu, neste critério, o Coeficiente de Aproveitamento (CA) de até 4 vezes a área do terreno junto aos eixos, e se reduziu o potencial construtivo fora dos raios de abrangência dos eixos, nos chamados “miolos de bairro”, onde as construções ficaram restritas a até 2 vezes a área do terreno. É importante destacar que, para todo potencial construtivo acima de 1 vez a área do terreno, o incorporador deve pagar uma “outorga onerosa” para o município, que abastece o Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb).
A cobertura da mídia tem gerado alguma confusão tratando como sinônimos o coeficiente de aproveitamento e a altura das edificações. O número de andares não tem relação direta com o coeficiente de aproveitamento, dado que a área pode ser distribuída no terreno de formas diferentes. Vemos hoje edifícios de mais de 20 andares sendo construídos com coeficiente de aproveitamento de apenas 4, tanto devido aos afastamentos e às áreas livres do terreno exigidos para a verticalização, como à adição de “áreas não computáveis” ao coeficiente de aproveitamento.
Paris, por exemplo, seria um exemplo onde boa parte da região central foi construída com coeficiente de aproveitamento entre 5 e 6, maior que o permitido nos eixos de transporte de São Paulo, mesmo que os edifícios tenham apenas 6 andares, dado que ocupam toda a área dos terrenos.
A exigência de afastamentos entre as edificações, principalmente no térreo, afasta as atividades dos pedestres e entre si, reduzindo a caminhabilidade. Consequentemente, o comércio de rua também se torna menos viável. Paulistanos devem notar que alguns dos bairros que se desenvolveram recentemente e que ainda possuem certa caminhabilidade, como Pinheiros, Itaim Bibi e a Vila Olímpia, mantiveram seu comércio de rua devido a pequenas casas que ainda não se transformaram em edifícios, dado que maioria dos novos edifícios foram recuados das calçadas e, muitas vezes, cercados.
O Plano Diretor também endereçou esta questão concedendo incentivos às “fachadas ativas”, isentando áreas do cálculo do CA na base dos edifícios que sejam ocupadas por lojas e que se aproximam das calçadas.
Além disso, já existia no Plano um bônus de potencial construtivo para construção de unidades habitacionais de preços mais acessíveis. Empreendimentos de Habitação de Interesse Social (HIS), por exemplo, teriam o incentivo de 50% do CA, ou seja, atingindo 6 vezes a área do terreno quando localizados nos eixos e 3 vezes fora dos eixos, isento de outorga onerosa.
É ponto pacífico que a restrição demasiada nos miolos de bairro aliada ao aumento do potencial em torno do transporte de massa levou ao boom construtivo hoje visto nestas áreas. Em menos de 10 anos de vigência do Plano, estes terrenos já se tornaram escassos. Está implícita nesta estratégia a desconsideração da cidade real, ou seja, do fato de que vários miolos de bairro já estavam consolidados acima de um coeficiente de 2 vezes a área dos terrenos.
Na proposta agora em discussão, houve alterações em relação aos coeficientes de aproveitamento, sendo talvez a mais polêmica o aumento do raio de abrangência considerado nas proximidades de transporte de massa para maior potencial construtivo. Ao redor das estações de metrô era considerado um raio de entre 400 e 600 metros. Agora, esse raio passará para 1 quilômetro. Já para os corredores de ônibus, que tinham a sua área de abrangência entre 150 metros e 300 metros a partir do eixo, passará para até 450 metros.
Críticos argumentam que este raio seria amplo demais e desvirtuaria a separação entre eixo e miolo, pois invadiria excessivamente os miolos de bairro. No entanto, situações como essa ocorreriam apenas em áreas específicas do centro expandido onde há maior densidade da malha de transporte, ou seja, onde a infraestrutura é de fato mais abundante – e onde a demanda por localização é, de fato, maior, necessitando uma resposta de maior oferta de espaço construído.
Incentivos para o bem e para o mal
O Plano Diretor também prevê incentivos usando diferentes ferramentas, como isenção de outorga onerosa, bônus no cálculo do potencial construtivo ou então áreas isentas do cálculo, como os exemplos mencionados de HIS e de fachadas ativas.
Outro incentivo que já existia no Plano Diretor era a chamada “Cota de Solidariedade” que, para empreendimentos acima de 20.000 m², exigia que 10% da área construída fosse destinada para HIS, beneficiando-se, por outro lado, de um aumento de 10% no seu potencial construtivo. A regra também possibilitava que estes 10% de área para HIS também fossem pagos em dinheiro, no valor de 10% da área do terreno. Assim, na prática, o mecanismo funcionou semelhante a um mero limite adicional de potencial através outorga. Na revisão atual, se propôs aumentar tanto os 10% para HIS quanto os 10% de bônus para 20%, incluir empreendimentos menores de 20.000 m² assim como criar um condicionante de que 50% das unidades construídas fossem destinadas para as faixas de renda mais baixas. A ampliação da cota foi acatada, mas sem a condicionante.
Outro pleito dos incorporadores aceito nesta revisão foi de aumentar a isenção de área construtiva para vagas de garagem. Antes de 2016, São Paulo exigia um mínimo de vagas de estacionamento a depender da área construída, que estimulava o uso do automóvel no momento que obrigava qualquer morador a pagar pelo espaço para guardar um automóvel, mesmo que não tivesse. A versão seguinte reverteu este estímulo ao extinguir a obrigatoriedade e instalar um limite para o número de vagas isentas do cálculo do aproveitamento.
Incorporadores solicitaram um aumento da isenção de vagas para automóveis, onde a cada 60 m² de área construída de cada unidade se ganharia uma vaga adicional, substituindo a regra anterior de uma vaga em unidades a partir de 30 m². Na prática, o efeito é o mesmo de isentar a venda de outorga ou de conceder um bônus de área construída para a construção de vagas de carros, dado que o incorporador poderá utilizar o coeficiente que usaria, antes, para vagas, para áreas residenciais, por exemplo.
Estes casos evidenciam o nível de arbitrariedade na alocação de coeficientes de aproveitamento e na definição de o que computa ou não no seu cálculo de áreas. A discussão do Plano Diretor em torno de casos de exceção, bônus e isenções é uma distração que deveria ser extinta. O cálculo dos CAs deveria ser simplificado, aumentando os coeficientes permitidos e considerando a área bruta total da edificação, cabendo ao incorporador decidir a alocação de área no seu empreendimento, mediante pagamento de outorga onerosa.
Há uma definição técnica para os coeficientes?
Urbanistas criticaram a revisão como uma permissão de “verticalização dispersa e sem limites” ou “adensamento construtivo generalizado e indiscriminado”, termos genéricos (e imprecisos) para despertar o sentimento de moradores que preferem manter seus bairros da forma como estão. Também alegaram a ausência de estudos para justificar tais aumentos de coeficientes.
Para avaliar se coeficientes são baixos ou altos, é importante ter em mente que nenhum estudo justifica a definição dos coeficientes, e tais estudos também não foram realizados para os coeficientes estabelecidos no Plano Diretor vigente. Ou seja, se há um questionamento para contrariar um aumento dos coeficientes, por simetria os que existem também deveriam ser questionados.
Existe, é claro, um critério de que o potencial construtivo nos eixos é maior que o dos miolos. No entanto, não há estudo que justifique especificamente os números 2 ou 4 (ao invés de 4 e 8, ou 2 e 10, ou qualquer outra combinação de números), tampouco as exceções ou bônus gerados para cada situação. Apesar de serem ferramenta predominante há décadas no planejamento urbano, o urbanista francês Alain Bertaud chama os coeficientes de “números mágicos”, já que não se apresenta metodologia técnica para defendê-los.
A infraestrutura está saturada… mas onde?
Se vamos nos aprofundar na técnica, deveria ser considerado o contrafactual da restrição do uso do solo nas discussões do Plano Diretor. Ou seja, o custo de infraestrutura para atender moradores que, impedidos de acessar uma região da cidade restrita pelo coeficiente de 2, por exemplo, acabam por escolher locais de moradia mais distantes, gerando um efeito em cascata de espraiamento populacional que exige um custo de infraestrutura mais alto. As famílias que ocupariam unidades que deixam de ser construídas próximas aos eixos nas regiões centrais não desaparecem, são apenas empurradas para localidades mais distantes.
Paulistanos que argumentam que áreas como Pinheiros e Jardins, que possuem a melhor qualidade de vida e a melhor infraestrutura da cidade, estão “saturadas”, provavelmente não conhecem a realidade de outros bairros que vão crescer para fora do centro expandido. Poucos se dão conta que as áreas mais densas muitas vezes não são as mais verticalizadas, mas sim favelas e outras áreas que crescem horizontalmente, na informalidade.
Além destas áreas, os centros históricos de cidades brasileiras, embora tenham ainda altos níveis de vacância dos edifícios, continuam figurando entre os bairros mais densos das suas respectivas cidades, tendo sido construídos com coeficientes de aproveitamento muito acima do que é praticado hoje. Até 1957, a média dos coeficientes de aproveitamento em São Paulo variava entre 8 a 10 vezes a área do terreno. O emblemático edifício Copan, por exemplo, atinge quase 12 vezes a área do seu terreno e normalmente é reverenciado, e não criticado por ter 2 ou 3 vezes mais área construída do que deveria segundo o padrão atual adotado para a cidade de São Paulo. Mesmo assim, não se busca reduzir o número de habitantes dessas áreas, mas sim ocupar mais o que já está construído.
O planejamento urbano tem tentado levar a densidade demográfica à infraestrutura existente, enquanto deveria fazer justamente o oposto. Densidade não é um fator controlável pelo planejamento municipal, enquanto a infraestrutura é. As discrepâncias entre densidade e infraestrutura deveriam ser identificadas de forma a priorizar investimentos nas áreas mais críticas, de forma a endereçar disparidades sociais e territoriais históricas e incorporar a cidade informal ao tecido urbano formal.
Coeficientes maiores, por favor
É importante destacar que as regulações de potencial construtivo não têm a capacidade de transformar terrenos por si só, apenas de limitar a sua transformação. Se não houver demanda por uma localização, nada ocorrerá no terreno, independente do coeficiente aplicado.
No caso do centro expandido de São Paulo, praticamente todo terreno tem seu preço definido a partir do potencial construtivo máximo permitido, com incorporadores buscando todos os truques possíveis para esgotar o potencial disponível nos seus projetos. Em outras palavras, todo terreno do centro expandido tem sua oferta restrita, gerando ineficiência econômica. Em um cenário onde houvesse margem nos coeficientes, incorporadores seriam desafiados a identificar qual a demanda por uma determinada localidade, independente da oferta máxima permitida por lei, como qualquer outro mercado. Esta prática imobiliária ocorre em algumas cidades médias brasileiras que têm menor demanda por localização, mas coeficientes que atingem o dobro da cidade de São Paulo.
O aumento da demanda é dirigido pelo aumento populacional e de renda. E mediante uma limitação de área construída, moradores de rendas mais altas competem pelos mesmos metros quadrados que pessoas de rendas mais baixas, inflando preços. Aliado ao fato de que, quase por definição, empreendimentos novos são mais caros que antigos e usados, a escassez de oferta explica por que os empreendimentos lançados foram destinados às rendas mais altas. Ao observarem edifícios novos surgindo com preços mais altos, urbanistas frequentemente invertem esta relação de causalidade, acreditando que é o aumento de potencial construtivo que leva ao seu encarecimento. No entanto, esta crença contraria a ciência econômica.
Os ganhos não se restringem a aspectos econômicos, mas também às contas públicas, dado que o aumento de potencial aumenta a outorga onerosa a ser capturada, assim como a base de IPTU a ser arrecadado. A partir de 2016, com os potenciais incrementados nos eixos mediante outorga, o Fundurb tem visto um aumento expressivo na arrecadação de recursos, saindo de um patamar de em torno de R$220 milhões por ano (a média nos 7 anos anteriores a 2016), a R$620 milhões em média desde 2016, sem considerar o ano de 2023 que, se continuar neste ritmo, pode atingir novamente a marca do R$1 bilhão no ano, recorde atingido em 2022. Impedir potenciais construtivos mais altos significa colocar um teto no potencial de financiamento da infraestrutura municipal.
Ferramentas para enxugar gelo
Além dos pedidos paradoxais de reduzir a oferta imobiliária como forma aumentar a acessibilidade habitacional, urbanistas têm defendido outras ferramentas com este objetivo, com pouco sucesso. Muitas áreas de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), em tese formuladas para incentivar a produção de HIS, exigem que incorporadores destinem no mínimo 60% das unidades para as faixas de renda mais baixas, que têm dificuldade de acessar financiamentos bancários. É paradoxal, ainda, que as ZEIS estejam limitadas ao coeficiente de aproveitamento de 4, não sendo possível atingir o coeficiente de 6 vezes previsto para HIS nos eixos de transporte. A dificuldade de se viabilizar economicamente essa exigência significa apenas que ela acaba sendo pouco aplicada, com áreas de ZEIS bem localizadas sem empreendimentos.
Outra ferramenta é a chamada “cota parte”, que define um número mínimo de unidades por empreendimento, para que não haja apenas grandes empreendimentos com grandes unidades, principalmente junto aos eixos de transporte de massa. Este também é um dos principais motivos pelo qual São Paulo presenciou o boom dos microapartamentos, destinados a cumprir a cota parte.
Em tese, unidades menores teriam preços menores e, aliando à restrição de vagas de garagem, garantiriam densidades demográficas maiores para utilizar o transporte de massa. No entanto, sendo bem localizadas, novas e pequenas, acabam por ter altos preços por metro quadrado, não configurando necessariamente como uma opção para famílias que gostariam de morar no centro expandido. Além do mais, o Plano Diretor de 2016 não estabeleceu regras claras, tampouco métodos de fiscalização, para saber se as unidades de HIS estavam, de fato, sendo vendidas para famílias de rendas mais baixas.
Ao desconsiderarem a dinâmica de mercado, ferramentas que tentam alocar onde cada estrato de renda vai morar na cidade e qual será o tamanho da sua unidade habitacional não atingem bons resultados. Se há um desejo para, ao longo dos eixos, aumentar a densidade sem reduzir demasiadamente o tamanho das unidades, assim como promover acessibilidade habitacional, o argumento deveria ser para permitir potenciais construtivos maiores, não menores, de forma a relaxar e diluir a competição por solo urbano. E se há um desejo para melhorar a qualidade de vida das regiões de rendas mais baixas e com pior infraestrutura, é necessário incrementar a receita do Fundurb maximizando a outorga.
Trade-offs da vida urbana
Protestos que buscam a restrição ou “organização” dos potenciais construtivos ressaltam a degeneração da qualidade de vida como outro argumento para impedir que determinadas regiões se transformem.
Fatores como o “caráter” dos bairros, o desenvolvimento de ilhas de calor, sombras geradas pelos edifícios, canalização de ventos, intensificação de ruído e até mesmo a visualização de estrelas à noite são apontados como elementos que devem exigir cuidado na transformação de qualquer região da cidade. Alguns desses pontos podem e devem ser mitigados com soluções arquitetônicas e urbanísticas, como regramentos de ruído e arborização e paisagismo urbano que qualifique espaços públicos e a vida na cidade.
No entanto, transformações nas características dos bairros são e sempre foram naturais do processo do desenvolvimento urbano, principalmente de uma metrópole como São Paulo, e suas mudanças refletem realidades da vida urbana que não possuem limites técnicos.
A moradia espaçosa, iluminada e silenciosa é, na realidade, a mais abundante, sendo a única disponível longe dos centros urbanos. E sabemos que famílias com rendas mais altas, que têm o luxo de ter um automóvel ou de trabalhar remotamente, têm diferentes opções para manter seu conforto. A opção por uma qualidade de vida suburbana ou de pequena cidade, subentendida pela noção de “miolos de bairro”, é factível dentro de uma metrópole, mas não nos terrenos mais demandados. É a vida urbana, com proximidade de empregos e serviços, que atualmente é escassa e restrita, sendo os trabalhadores presenciais que gastam 3 horas por dia para chegarem no centro de São Paulo, ou que arriscam suas vidas usando motocicletas, os maiores impactados.
O aumento de potencial construtivo é insuficiente
A revisão ainda é tímida no aumento dos coeficientes de aproveitamento, principalmente nas áreas centrais junto aos eixos de transporte, onde há maior demanda por localização. Se vemos hoje nas regiões dos nossos centros históricos exemplos de acessibilidade, diversidade e vida urbana, nada deveria impedir que outras áreas semelhantes emergissem com o crescimento da cidade.
O aumento da oferta de área construída, por si só, já auxilia na acessibilidade habitacional, como mostra a literatura econômica. Para atingir a base da pirâmide, o município deve maximizar a sua arrecadação com outorga onerosa e IPTU de forma a investir em políticas habitacionais como urbanização de favelas, reduzindo o déficit habitacional qualitativo, assim como na distribuição de auxílios de renda para moradia. Investimentos na melhoria e expansão da infraestrutura de transporte, não só de massa mas também da malha cicloviária e de calçadas, assim como na qualificação de espaços públicos através da arborização e canteiros de retenção de água para drenagem urbana, também são peças-chave para o desenvolvimento urbano sustentável.
Anthony Ling é arquiteto e urbanista, criador e editor-chefe do site Caos Planejado e autor do “Guia de Gestão Urbana” (Editora Bei).