A agenda de política econômica no Brasil vive ciclos recorrentes de avanços e retrocessos.
Nos momentos de crise, o País adota reformas para enfrentar alguns de seus difíceis dilemas. Mas mal começamos a colher os frutos da melhora, voltamos a reincidir nos retrocessos, criando novos problemas para os anos seguintes.
A reação à última grande crise – iniciada em 2014 – trouxe importantes avanços na política econômica, e foi seguida por uma retomada da economia.
O teto de gastos permitiu uma impressionante queda da taxa de juros de mercado a partir do terceiro trimestre de 2016, interrompendo a severa recessão iniciada no governo Dilma.
A reforma trabalhista parece ter permitido melhor negociação entre empresas e seus empregados, reduzindo os incentivos a ações judiciais oportunistas. Os dados mais recentes indicam o fortalecimento do mercado formal de trabalho e a redução do desemprego.
As medidas adotadas no mercado de crédito, como o fim da TJLP e a introdução do PIX, estimularam o crescimento do mercado de capitais e diminuíram os custos das operações de pagamento.
Já a reforma da previdência, ainda que mitigada, adiou uma crise fiscal que se avizinhava. Finalmente, os novos marcos regulatórios para saneamento e navegação de cabotagem estimulam o investimento privado e devem reduzir custos de logística. Houve até uma abertura comercial relevante, ainda que muito abaixo do que necessitamos. As concessões e privatizações estão andando.
Infelizmente, foi bom enquanto durou.
No próximo ciclo político, vamos herdar o resultado das medidas aprovadas pelo Congresso nos últimos dois anos. Superada a fase mais crítica da crise recente, os retrocessos retornaram, e a conta do descontrole será cobrada no próximo governo.
O carro chefe dessa deterioração foi a chamada PEC Kamikaze (Emenda Constitucional 123/22). Como acontece com frequência no Brasil, havia uma proposta de melhorar a política social, que aumentava o benefício mínimo do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600. A medida, porém, trouxe de carona novos benefícios para grupos organizados, como o auxílio em dinheiro para taxistas e caminhoneiros, autorização de novas transferências aos estados e municípios para cobrir subsídios ao transporte coletivo e de desonerações para o setor do etanol.
Essa medida é emblemática não só pela rapidez com que se aprovou uma emenda à Constituição, atropelando-se ritos do Legislativo, como pela facilidade com que se penduraram ganhos oportunistas (como no caso do etanol) e populistas (taxistas e caminhoneiros) em uma lei inicialmente voltada a remediar a situação dos mais pobres. Mesmo a política de alívio à pobreza foi desenhada mais de olho no marketing eleitoral do que na sua eficácia. Seria possível conseguir a mesma redução da pobreza com despesa menor.
Chama atenção a facilidade com que grupos organizados têm conseguido viabilizar seus desejos no Congresso, repassando a conta para a população. A lista parece interminável.
Foram aprovadas a criação do desnecessário Tribunal Regional Federal de Minas Gerais (Lei 14.226/21); a redução a zero, por 60 meses, de tributos federais para hotéis e outras empresas do setor de turismo, bem como transferência em dinheiro para profissionais do setor turismo (Lei 14.148/21); a não-incidência de IPTU sobre templos religiosos (EC 116/22); os privilégios previdenciários dos militares (EC 103/19) e seu direito à acumulação de cargos públicos (EC 101/19).
Foi concedida proteção constitucional aos benefícios tributários e financeiros concedidos à Zona Franca de Manaus e a setores de tecnologia e de semicondutores (EC 121/22).
Prorrogaram-se benefícios fiscais que tinham data para acabar, como a desoneração da folha de pagamento de 17 setores econômicos (Lei 14.228/21), a desoneração na aquisição de veículos por taxistas e portadores de deficiência (Lei 14.287/21) e a dedução de IR para doações de incentivo ao esporte (Lei 14.439/22).
Foram garantidos subsídios aos produtores de semicondutores e de outros bens de informática (Lei 14.302/22). Equipamentos para a produção de biogás e biometano também foram desonerados (Decreto 11.003/22).
As empresas de curso superior, que gozam do benefício fiscal do Prouni, conseguiram obter a redução do número de bolsas que precisam conceder em contrapartida aos benefícios que recebem (Lei 14.350/22).
As empresas de administração portuária ganharam a ressurreição do regime especial “Reporto”, que havia sido extinto em 2020, e lhes garante a suspensão de PIS, Cofins e Imposto de Importação na compra de equipamentos (Lei 14.321/22). Outra ressureição foi a da isenção de IRPF no arrendamento mercantil de aeronaves (Lei 14.355/22).
A indústria automobilística foi contemplada com o Programa Renovar, que subsidia a troca de caminhões velhos por novos (Lei 14.440/22), mesmo depois que programa similar, no Governo Dilma, criou o excesso de oferta de fretes, que levou à greve dos caminhoneiros. As empresas do SIMPLES Nacional ganharam um Refis (Lei Complementar 193/22). Os municípios parcelaram suas dívidas com os respectivos regimes de previdência (EC 113/21).
Os caminhoneiros ganharam a possibilidade de ingressar no regime de Microempreendedor Individual (MEI), que garante quase todos os benefícios previdenciários cobrando uma mensalidade de pouco mais de R$ 60 (Lei Complementar 188/21). Os inadimplentes do FIES obtiveram o perdão quase integral de suas dívidas, independentemente de sua situação financeira atual e engajamento no mercado de trabalho (Lei 14.375/22).
Servidores de extintos territórios foram incorporados em carreiras federais, em geral com melhor remuneração (MP 1122/22). Os servidores de empresas estatais foram presenteados com a revogação, pelo Congresso Nacional, de norma administrativa que colocava limite aos benefícios e subsídios dos planos de saúde patrocinados pelas empresas (Decreto Legislativo 26/21).
A lei de capitalização da Eletrobras (Lei 14.182/21) foi atulhada por adendos oportunistas com ganhos para grupos específicos, como a contratação obrigatória de termelétricas a gás natural em localidades predeterminadas onde não há gás, nem falta energia. Isso obriga a construção de dispendiosos e desnecessários gasodutos.
Essa mesma lei determina a prorrogação dos contratos do Programa de Incentivos às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) por 20 anos e a compra mandatória de energia de pequenas centrais hidrelétricas, independentemente da análise de custo-benefício e comparação com outras fontes.
Trabalhadores do setor da cultura receberam benefícios financiados com recursos público com as Leis Paulo Gustavo (Lei Complementar 195/22) e Aldir Blanc (Lei 14.399/22). Tivemos, também, a abertura da temporada de pisos salariais. Foram mais rápidos os agentes comunitários de saúde e endemias que, de quebra, também levaram direito a aposentadoria especial (EC 120/22).
Na sequência vieram os profissionais de enfermagem (Lei 14.434/22), cujo piso está sendo discutido no STF e deve resultar em medidas para empurrar os custos privados e públicos para o Tesouro Nacional. Mais de uma centena de outras categorias têm projetos de piso salarial tramitando no Congresso, e esperam se beneficiar dessa abertura de porteira.
Os professores já haviam conseguido aprovar seu piso de remuneração em 2008, com reajuste salarial indexado ao gasto mínimo por aluno. Com a Emenda Constitucional 108/20, que ampliou o Fundeb, o gasto por aluno aumentou, determinando reajuste do piso em mais de 30% em 2022, e novos reajustes bem acima da inflação pelos próximos anos.
Todos esses privilégios foram concedidos, renovados ou ampliados sem qualquer avaliação de custos e benefícios.
Os Congressistas, que aprovaram todas essas novas “meias-entradas”, cuidaram de garantir o seu quinhão. Assim, surgiram as emendas de relator (Leis de Diretrizes Orçamentárias desde 2020) e a execução obrigatória das emendas individuais e de bancada (EC 100/19 e 105/19).
O total das emendas, que representavam pouco mais de 5% da despesa não-obrigatória em 2019, pularam para 32% no projeto de lei orçamentária de 2023. E isso é só parte da história, pois os parlamentares se concederam, também, um aumento do fundo de financiamento de campanhas eleitorais (Lei 14.303/22).
A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023 (Lei 14.436/22) aprofundou o controle do Congresso sobre o orçamento, ao determinar que o valor a ser aplicado em emendas de relator seja previamente reservado pelo Poder Executivo. Antes, os parlamentares tinham o desgaste político de dizer onde seria cortada a despesa para viabilizar suas emendas. Agora, nem isso. Recebem o dinheiro limpo para gastar.
Boa parte das liberalidades descritas até aqui representaram pressões sobre o limite máximo de despesa, estabelecido pelo teto de gastos. Isso levou a três emendas constitucionais para flexibilizá-lo: além da já citada PEC Kamikaze (EC 123/22), tivemos a PEC Emergencial (EC 109), com gasto extrateto de R$ 44 bilhões e a PEC dos Precatórios (EC 113/21 e 114/21), que além de ampliar o teto em R$ 113 bilhões, permitiu a postergação de parte de dívidas judiciais líquidas e certas do Governo Federal, cuja conta, que cresce todo ano, ficou para depois de 2027.
Não bastasse a fragilização no lado da despesa, houve a motivação eleitoral de conter o preço dos combustíveis, concedendo-se a redução a zero das alíquotas de PIS/COFINS sobre diesel, biodiesel, GNP, gás natural, gasolina e QAV (Lei Complementar 192/22 e Decreto 10.638/21). Em seguida, a Lei 14.352/22 autorizou o governo a fazer esse tipo de redução sem apresentar compensação à perda de receita, na contramão do que prevê a Lei de Responsabilidade Fiscal.
A Lei Complementar 194/22 colocou um teto para a tributação de combustíveis e energia elétrica pelo ICMS, o que deve, nos próximos anos, desequilibrar significativamente as contas dos estados e municípios. Essa lei resultou em um contencioso judicial que empurra o custo fiscal para a União.
A cada ciclo político recebemos a herança do que foi construído no governo anterior. Os momentos de crise têm induzido a adoção de medidas que aperfeiçoam as políticas públicas e colaborado para a retomada do crescimento nos anos que se seguem.
Superadas as dificuldades mais graves, contudo, a agenda de captura do estado por grupos de interesse é retomada com vigor, para prejuízo das contas públicas e do crescimento econômico do país.
O próximo governo pode ter a sua lua de mel tradicional nos primeiros meses de mandato. Mas a conta do que foi aprovado nos últimos dois anos será cobrada. E desta vez será bem mais difícil corrigir as distorções criadas recentemente, pois os parlamentares se tornaram senhores de boa parte dos recursos discricionários do orçamento federal, enfraquecendo o Executivo.
Marcos Lisboa é presidente do Insper. Marcos Mendes é Pesquisador Associado do Insper.