Muito antes de as Cortes constitucionais existirem, já se reconhecia – como instrumento de limitação do poder estatal e de defesa da cidadania – o direito do Legislativo de rever os atos do Executivo.
Na configuração contemporânea dos Estados Democráticos de Direito, a competência do Parlamento para controlar o poder do chefe do Executivo é considerada um elemento constitutivo do próprio regime democrático. A Constituição de 1988 estabeleceu que: “é da competência exclusiva do Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa” (art. 49, caput e V).
É preciso, portanto, olhar com calma a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que restabeleceu parcialmente a validade do decreto do Presidente da República elevando as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), sustado anteriormente por decreto legislativo. Não é mera disputa política entre Executivo e Legislativo.
Três pontos chamam a atenção.
Em primeiro lugar, o ministro Alexandre de Moraes interpretou restritivamente a competência do Congresso, o que colide com a jurisprudência do STF de ampliar os mecanismos institucionais de controle do poder estatal.
Veja, por exemplo, o entendimento que a Corte tem sobre suas próprias competências de controle de constitucionalidade. A tendência tem sido ampliá-las, sob a justificativa de prover efetividade às normas constitucionais. O caso do IOF, no entanto, revela um olhar peculiar: quando é outro Poder a exercer a defesa da cidadania, os parâmetros podem ser outros.
Segundo ponto: ao aceitar imediatamente o papel de árbitro da disputa, ao entender que era seu dever entrar no mérito da discussão entre Executivo e Legislativo, o ministro Alexandre de Moraes relevou um dado básico da questão.
Sendo uma competência do Congresso, a atribuição prevista no art. 49, V da Constituição tem necessariamente uma dimensão política. O Legislativo não profere decisões jurídicas. Isso significa que o Judiciário deve ser extremamente cuidadoso – e extremamente respeitoso – com essa competência do Congresso, interferindo apenas em casos absolutamente extravagantes.
Vale repetir: a própria Constituição quis atribuir um caráter político ao controle do Executivo pelo Legislativo, cabendo ao Judiciário preservar essa atribuição. De outra forma, a Assembleia Constituinte não teria previsto essa competência do Congresso. Bastaria o controle de legalidade e de constitucionalidade feito pela Justiça.
Por último, mas não menos importante: o aumento do IOF tinha explicitamente um caráter arrecadatório, e não regulatório.
Não era possível tapar o sol com a peneira: o Executivo havia exorbitado seu poder.
Por isso, o Congresso editou um decreto legislativo sustando o ato do Executivo – fenômeno raríssimo, infrequente mesmo em governos politicamente fracos.
Pois bem, o ministro Alexandre de Moraes negou este fato e afirmou que, excetuando o risco sacado, todo o restante tinha caráter regulatório. Ao atuar assim, enfrentando a realidade para dar ganho de causa ao governo, a decisão do ministro assumiu um caráter mais político do que jurídico.
Eis a contradição, a merecer análise serena por parte do Pleno do Supremo: a decisão sobre o IOF negou ao Congresso o direito de ser político no exercício de suas competências, mas autorizou o próprio STF a ser político no controle do Legislativo.
A defesa da Constituição inclui defender as competências do Congresso, competências essas que integram o núcleo duro de um Estado Democrático de Direito.
Há ainda um aspecto especialmente significativo. Ao envolver tema tributário, o caso não se refere a uma questão formal, burocrática, sobre as atribuições institucionais de cada Poder, mas remete à própria origem histórica do Parlamento.
Numa democracia, para aumentar imposto, o Executivo tem de ser capaz de convencer o Legislativo da razoabilidade da sua demanda. Não basta convencer o Judiciário.
Nicolau da Rocha Cavalcanti é advogado, mestre e doutorando em Direito pela USP, e autor do livro ‘O perigoso encanto da indignação.’