A Operação Carbono Oculto colocou em evidência um ponto sensível do sistema financeiro: a suspeita de que instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN) estariam sendo irrigadas com recursos provenientes de atividades ilícitas praticadas por organizações criminosas.
É difícil conceber uma investigação de lavagem de dinheiro que não envolva, em algum momento, o rastreamento do fluxo financeiro. Essa é, em regra, a rota mais segura para compreender como os recursos ilícitos foram introduzidos, movimentados e reinseridos na economia.
Contudo, os números e relatórios contam apenas uma parte da história: a análise fria de movimentações de ativos precisa ser complementada por elementos contextuais, verificações externas e cruzamentos de dados que revelem a lógica e a motivação subjacentes às transações, bem como a adesão de agentes do mercado financeiro aos propósitos criminosos do titular dos valores ilícitos.
Investigações sobre a entrada de recursos provenientes de organizações criminosas em instituições que compõem o Sistema Financeiro Nacional (SFN) devem ser prudentes e, de preferência, discretas. As autoridades precisam avaliar como e por qual razão esses valores passaram a ser custodiados ou administrados por instituições financeiras ou entidades a elas equiparadas.
A lei brasileira impõe a bancos e a outras pessoas jurídicas que desenvolvam atividades sensíveis para a lavagem de dinheiro obrigações específicas de prevenção. Elas fazem parte do grupo chamado de “pessoas obrigadas”, justamente por atuarem em setores mais vulneráveis à tentativa de esconder dinheiro de origem criminosa. Entre essas obrigações está a de conhecer o cliente — o processo conhecido como KYC (Know Your Customer) – e a de comunicar ao COAF, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, qualquer movimentação considerada atípica ou suspeita.
Mas há um detalhe importante: a legislação não exige que a instituição recuse a realização da operação suspeita. Uma vez cumpridos os procedimentos de identificação e checagem que permitiram o início do relacionamento com o cliente, a instituição pode realizar a transação, desde que a comunique ao COAF, o que permite que as autoridades acompanhem o fluxo do dinheiro sem que os envolvidos sejam alertados.
Não se pode ignorar que o descumprimento, pelas instituições financeiras, das normas do órgão regulador pode causar instabilidade ao SFN, aumentando o risco sistêmico e de crises financeiras. O mesmo risco, por outro lado, pode advir da precipitação em se levantar publicamente suspeitas contra essas entidades sem a devida apuração. E é preciso atenção na análise das consequências jurídicas da realização de operações atípicas ou suspeitas e da sua não comunicação ao COAF.
Quando um banco ou uma gestora de ativos se depara com uma operação atípica ou suspeita, e a comunica ao COAF, pouco importa se a operação foi, ou não, realizada. A regra é clara: se a operação foi comunicada ao COAF, a instituição financeira cumpriu sua obrigação. A investigação, dali em diante, fica por conta do Estado.
Por outro lado, se a instituição financeira, diante das características da operação, se recusa a realizá-la, mas não comunica a tentativa ao COAF, não se pode imputar lavagem de dinheiro aos seus gestores, mas podem eles ter praticado ilícito administrativo, já que a mera tentativa de realização de operações atípicas ou suspeitas é de comunicação obrigatória, nos termos das normas do BC aplicáveis.
O cenário mais delicado é aquele em que a instituição financeira realiza a operação atípica ou suspeita sem avisar o COAF. Diante de situações como essas, as autoridades responsáveis pela persecução penal vêm buscando atribuir a prática de crime de lavagem de dinheiro a essas entidades. E muitas vezes com razão.
É preciso, no entanto, algum cuidado. Nem toda operação “atípica” significa lavagem: às vezes, ela só chama atenção por envolver um valor muito alto ou por apresentar características incomuns.
Além disso, nem sempre o agente da instituição financeira conhece a origem do dinheiro. Se ele não tinha conhecimento da origem criminosa, não há dolo (intenção), apenas negligência. Nesse caso, o que se aplica é uma infração administrativa, não crime, já que não há crime de lavagem de capitais culposa em nosso ordenamento jurídico.
Por tudo isso, investigações de lavagem de dinheiro não podem se apoiar apenas em extratos e relatórios. Eles são peças do quebra-cabeça, mas não revelam a história inteira. É necessário avaliar o contexto, entender a lógica das operações e checar se as movimentações fazem sentido diante da realidade econômica de quem movimenta os recursos.
Só esse olhar mais amplo permite responsabilizar com justiça — seja no campo administrativo, seja no penal — os que participam do mercado financeiro e de capitais. É um trabalho que exige método, paciência e, sobretudo, precisão, para que a busca por transparência não se torne ela própria um fator de instabilidade.
Fernanda Tórtima é advogada criminal, sócia fundadora do TGM Advogados, mestre em Direito Penal pela Universidade de Frankfurt e doutoranda em Direito pela FGV/SP.