Desde que assumi a superintendência do Ecad, em novembro de 2019, tenho enfrentado desafios que considero os mais difíceis da minha carreira.

O primeiro foi a pandemia. O mundo do entretenimento, que depende da aproximação das pessoas, num piscar de olhos não podia mais existir por conta de uma doença letal e transmitida pelo contato social. A paralisação dos shows e eventos foi um choque para o setor, e exigiu de artistas e gestores muita capacidade de adaptação para superá-la. Conseguimos.

Agora, um outro desafio gigantesco ameaça a indústria da música: a inteligência artificial generativa.

A questão central é que ainda não existe uma definição clara sobre como a AI vai ser usada no mercado musical, nem garantias reais de que a tecnologia respeitará os direitos conquistados pelos responsáveis pela criação musical ao longo de décadas, ou seja, autores e artistas.

Este é um debate global.

A organização alemã GEMA, que representa compositores e editores naquele país, entrou com uma ação contra a OpenAI, a criadora do ChatGPT, contestando o uso pela empresa de letras e melodias criadas por artistas para treinar, sem autorização, seus sistemas de robôs. A decisão da Justiça alemã saiu ontem, foi favorável à GEMA e abre um precedente importante para a indústria musical global.

No Brasil, seguimos na mesma direção. Recentemente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina deferiu a favor do Ecad ao reconhecer sua legitimidade para cobrar direitos autorais de um parque temático em Pomerode que usou AI para sonorizar seus ambientes. A Justiça confirmou que a cobrança se aplica a qualquer utilização musical de execução pública, independentemente da origem ou da forma da obra.

Enquanto acompanhamos as discussões em torno do Projeto de Lei 2338/2023 – aprovado pelo Senado em dezembro de 2024 e ainda em tramitação na Câmara – que trata da regulação da AI e de seu impacto sobre os direitos autorais, o Ecad e as sete associações de música de gestão coletiva decidiram tomar medidas concretas para preservar os direitos dos artistas.

Desde julho, autores e artistas precisam informar se utilizaram ferramentas de AI generativa, indicar se o uso foi total ou parcial, especificar quais plataformas foram empregadas e incluir os prompts (instrução dada a um programa de Inteligência Artificial) utilizados em suas músicas. As informações passam a integrar o cadastro musical e são de responsabilidade dos autores. Declarações falsas ou omissões poderão provocar consequências legais, conforme prevê a legislação civil e penal brasileira.

O objetivo é garantir transparência e proteger os direitos dos criadores musicais. Essa atualização permitirá identificar corretamente as obras e assegurar que o uso da tecnologia não comprometa a remuneração dos artistas. Também criamos um Comitê de Análise Cadastral para atuar no combate às fraudes e inconsistências cadastrais​. Faremos ainda monitoramento e bloqueio de cadastros suspeitos com padrões de irregularidade relacionados diretamente ao uso de IA ou montagens não autorizadas. E estamos avançando nas parcerias com plataformas digitais para coibir práticas irregulares.

Ainda temos muito a debater sobre os impactos positivos e negativos da IA em nossas vidas e atividades profissionais, mas o direito do autor e a indústria musical brasileira precisam sair fortalecidos e preservados desse processo.

A máquina só é capaz de criar canções, produzir arranjos ou imitar vozes humanas a partir da existência de um amplo, complexo e completo banco de dados, registro histórico da rica produção musical dos artistas. A conclusão é simples: na música, não existe ‘copia e cola’.

Isabel Amorim é a superintendente do Ecad.