Jean-Baptiste Colbert, ministro das finanças de Luís XIV, dizia que “a arte da tributação consiste em depenar o ganso de modo a obter a maior quantidade de penas com o mínimo possível de assobios”.
Nos últimos dias, depois de conhecer a tão aguardada regulamentação da Reforma Tributária (encaminhada pelo Governo ao Congresso), os gansos começaram a desconfiar de algumas das promessas feitas – e a assobiar.
O projeto de lei complementar tem mais de 350 páginas, 499 artigos e 24 anexos, e trata dos principais aspectos dos novos tributos (IBS, CBS e IS). A entrevista coletiva concedida pela equipe que desenhou o PL levou 7 horas. Por aí já se vê que a simplificação não será tão simples.
Um dos pontos mais polêmicos é o que trata do Imposto Seletivo, que incidirá sobre embarcações e aeronaves, fumo, bebidas alcoólicas e açucaradas. O imposto é um excise tax, destinado a tributar condutas que se pretenda desincentivar – por isso o apelido de “imposto do pecado”.
Acontece que o Brasil criou o “pecado jabuticaba”, aquele pecado que só existe por aqui, já que o tributo incidirá também sobre a extração dos chamados bens minerais, dentre os quais foram selecionados apenas minério de ferro, petróleo e gás natural (admitida mínima exceção nesse último, quando utilizado pela indústria nacional).
A iniciativa é inédita e não encontra paralelo no mundo. A quase totalidade dos países que aplicam excise taxes o fazem sobre bens não-essenciais como bebidas alcoólicas ou atividades socialmente danosas, como jogos de azar/bets. Não existe, no entanto, caso de tributação pelas excise taxes de insumos produtivos, como são, por exemplo, os produtos da mineração.
Esperava-se que a regulamentação desse um tratamento tributário adequado às operações de extração de bens minerais, atendendo o compromisso assumido e reafirmado recentemente pelo secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, no sentido de que o Seletivo “será usado para fins regulatórios.” Mas o que se vê no projeto do Executivo é um imposto com finalidade escancaradamente arrecadatória.
E o mais grave: o pecado “tipo exportação” também será tributado. Existe previsão de incidência do seletivo nas exportações de minério de ferro, petróleo e gás natural, contrariando princípios básicos da reforma e o próprio discurso do Ministro da Fazenda quando da entrega do PL de que “as exportações serão desoneradas (…) não vamos exportar impostos, o que encarece nossos produtos no mercado internacional”.
A coisa fica ainda mais esdrúxula porque o próprio art. 153, que introduz o imposto seletivo na Constituição, prevê a vedação de sua cobrança nas exportações. Por que, então, a regulamentação do tributo deveria destoar, onerando o minério de ferro, petróleo e gás natural exportados?
Para além de inconstitucional, a incidência sobre exportações põe em risco a balança comercial brasileira. O petróleo e o minério de ferro ocupam, respectivamente, a segunda e terceira posições no ranking dos nossos produtos mais exportados em 2023 (talvez aqui a justificativa encabulada para a escolha justamente deles, dado o potencial arrecadatório).
Hoje os produtos nacionais já são mais tributados que seus concorrentes estrangeiros, e ficariam sujeitos a uma tributação adicional que aumentaria ainda mais a distância entre o Brasil e seus principais competidores, retirando a competitividade dos bens exportados e prejudicando a nossa balança comercial.
No caso do minério de ferro, é curioso notar a incoerência entre a política mineral e a política fiscal.
Política pública de caráter permanente instituída por Decreto presidencial e regulamentada por Resolução do Ministério de Minas e Energia – a chamada Pró-Minerais Estratégicos – estabelece que o minério de ferro é um mineral estratégico para o desenvolvimento do País.
O objetivo de tal política é, nos dizeres do Decreto, “priorizar os esforços governamentais para a implantação de projetos de produção de minerais estratégicos”.
Ora, como algo pode ser estratégico para o desenvolvimento nacional, e ao mesmo tempo sobretaxado com um tributo criado para desincentivar condutas?
Esse singelo exemplo joga luz sobre o obscurantismo no qual a reforma se vê situada neste momento: a sanha arrecadatória, motivada pela notória ineficiência nos gastos públicos, ecoa mais alto do que a preocupação com o desenvolvimento nacional, criando incoerências que afastam o País da segurança jurídica que a iniciativa privada tanto persegue.
Luiz Gustavo Bichara é sócio do Bichara Advogados.