No Brasil, o mercado de combustíveis se assemelha ao relógio distorcido pintado por Dalí em seu quadro ‘A Persistência da Memória’: transmite a sensação de ir contra a realidade, preso a um tempo que ficou apenas na memória.

É urgente a necessidade de colocarmos o passado em seu devido lugar, desfazendo o monopólio no refino e estabelecendo um ambiente competitivo capaz de atrair investimentos para o setor. E é preciso agir antes que as oportunidades derretam — e as soluções se tornem cada vez mais difíceis e onerosas.

Num mercado livre de fato, cada empresa estabelece sua política de precificação, a regulação do mercado se dá pela competição entre os próprios agentes, e a discussão sobre capacidades de produção e taxas de utilização de refinarias deixa de fazer sentido.

Entretanto, não há no Brasil sequer a sombra de um mercado livre: nosso abastecimento de combustíveis vive sob a égide de um monopólio de fato, tanto no refino quanto na infraestrutura logística. 

Para estimular a competitividade da economia, o novo Governo faria bem em estimular a concorrência iniciando um PERÍODO DE TRANSIÇÃO até que possamos chegar, um dia, ao livre mercado e sua tão subestimada geração de riqueza para toda a sociedade.

Como fazer esta transição?

A primeira (velha) ideia a se abandonar é aquela que enxerga a Petrobras como a garantidora do abastecimento nacional. Por décadas, esta visão impediu a empresa de tomar decisões tendo como base apenas seu interesse econômico, e permitiu que ela fosse usada como ferramenta política, com os resultados escandalosamente nefastos que todos conhecemos.  

Precisamos criar condições para que a Petrobras compartilhe com outros agentes a responsabilidade do abastecimento nacional — por exemplo, abstendo-se de importar e permitindo que os agentes privados atuem, complementando o volume da demanda e sem comprometer o ponto ótimo de operação nas refinarias nacionais.  

Uma saída seria o estabelecimento das capacidades operacionais “por produto” nas refinarias nacionais, com periodicidade semestral, permitindo alternativas de planejamento para o abastecimento nacional e o estabelecimento de um setor mais dinâmico e competitivo. Outra ideia seria a publicação trimestral da produção por refinaria versus o mercado do polo.

Para entender estas ideias, é preciso lembrar como funciona o refino no País — todo ele nas mãos da Petrobras.

O Brasil é o sétimo maior consumidor de derivados no mundo, mas a oferta nacional de combustíveis não é suficiente para suprir a demanda doméstica. 

Não há, tampouco, previsões de aumento significativo da capacidade de refino nos próximos anos, de modo que continuaremos sendo importadores líquidos destes derivados, um verdadeiro desperdício de dólares e de oportunidade.  O déficit atual é de cerca de 1 milhão de metros cúbicos/mês no óleo diesel e 300 mil metros cúbicos/mês na gasolina — o erquivalente a metade do consumo do Estado de São Paulo.

Com a expectativa de aumento da demanda, a evolução da necessidade de importação de derivados sinaliza a urgência dos investimentos em infraestrutura de abastecimento para garantir a oferta do produto, seja com origem na produção nacional ou importado, o que é vital para a continuidade da retomada econômica após a recessão dos últimos anos. 

Mesmo a infraestrutura para recebimento e expedição de produtos importados nos portos já se encontra com um gargalo logístico.  Um navio de diesel ou gasolina espera, em média, oito dias para descarregar, o que onera o consumidor final em aproximadamente R$ 20/m³. Num cenário de crescimento econômico acelerado, ficará cada vez mais visível a existência de restrições para o abastecimento nacional de combustíveis.

​Por outro lado, o volume processado nas refinarias nacionais cai desde 2014, o que parece não fazer sentido tendo em vista o déficit existente. Conforme declarações da própria Petrobras, existe um ponto ótimo de carga nas refinarias a partir do qual o refino começa a gerar derivados com rentabilidade menor do que o petróleo ou que não possuem mercado dentro da área de influência das refinarias, viabilizando a exportação do óleo cru. Isto significa que não necessariamente a operação em plena carga das refinarias maximiza o resultado para o segmento de refino.
 
A Petrobras já manifestou seu reposicionamento estratégico: pretende balizar seus preços pelo mercado internacional e pela taxa de câmbio, de forma a maximizar seu lucro. Assim, não é razoável que a empresa execute elevadas taxas de utilização nas refinarias ou efetue importações de derivados, diminuindo a rentabilidade de seus ativos para cumprir o status de único agente supridor.
 
O único caminho para a concretização do plano de desinvestimento em refino é o estabelecimento de um ambiente pró-concorrencial, em que os investidores tenham segurança para avaliar oportunidades de empreendimentos em infraestrutura logística, bem como participar dos negócios de refino existentes e analisar a viabilidade de implantação de novas refinarias no Brasil. 

Num cenário como o atual, em que a Petrobras flexiona seu músculo de monopólio e realiza movimentos de preços nas praças em que há pressão competitiva, inibindo as operações de outros agentes, não será possível viabilizar este movimento, e o plano de desinvestimento ficará apenas no papel. 

A prática de preços abaixo da paridade (nos pontos de entrega do produto) onde há alternativas de produtos importados já levou ao cancelamento de investimentos privados na infraestrutura de terminais.  Neste quadro, que investidor terá coragem de imobilizar capital em refinarias, para as quais o tempo de retorno do investimento é muito maior?

Fará bem ao novo Governo lembrar-se dos erros cometidos no passado recente e apostar no caminho inverso.  O caminho da concorrência — que vai requerer muita ousadia — renderá mais frutos ao País e aos brasileiros do que o caminho do protecionismo, da reserva de mercado e dos cartórios. 

​Já passou da hora de acertarmos os ponteiros. Que nossos relógios não sejam tão preguiçosos como os de Dalí.

Adriano Pires é diretor do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE), uma consultoria em energia.