Para quem acompanha há muito tempo as negociações internacionais sobre mudança climática, é difícil ler “Como evitar um desastre climático: as soluções que temos e as inovações necessárias”, de Bill Gates (320 páginas, Companhia das Letras, R$ 41,90) sem uma ponta de indignação.

10080 3b70dac2 0abc 0000 202f 4b7a047f0b7aNão pelo livro em si: o fundador da Microsoft faz um ótimo trabalho de botar na ponta do lápis os custos da transição energética e econômica para um mundo sem emissões de carbono, o único compatível com a existência da civilização neste século. Mas é revoltante constatar que o país que mais lucrou arrebentando o clima da Terra, os Estados Unidos da América, se prepara agora para disputar a hegemonia econômica global vendendo a solução para a crise.

Os Estados Unidos mantêm a luta contra o aquecimento global refém de seus interesses desde sempre. Em 1995, o Senado americano votou por 95 a zero contra a ratificação de qualquer acordo climático que não impusesse compromissos de redução de emissões à China. Um dos votos foi do senador Joseph Biden Jr., de Delaware. Dois anos depois, o mundo adotou o primeiro acordo do clima, o Protocolo de Kyoto, e os EUA, previsivelmente, não o ratificaram. Sem o maior emissor histórico de gases de efeito estufa a bordo, Kyoto naufragou.

Em 2009, quando 196 nações se preparavam para ir a Copenhague fechar um novo e – esperava-se – definitivo acordo do clima, os EUA de novo se empenharam para melar o avanço. Desta vez estavam acompanhados: a China também não queria compromissos obrigatórios e os presidentes dos dois países rivais combinaram que nada além de uma declaração política frouxa emergiria dali. O presidente americano do turno era Barack Obama; seu vice, Joseph Biden Jr. Apenas em 2015, quando o gás natural barato já havia deslocado o carvão na geração de energia nos EUA foi que o Acordo de Paris se tornou possível. Sua implementação, porém, ficou suspensa pelos quatro anos insanos do governo Trump, e volta ao trilho agora, com Joe Biden. Desta vez parece que vai.

O livro de Gates é o manual dessa nova era na qual a maior economia do planeta desperta para a crise do clima, para as ameaças que ela representa para o modo de vida americano e – sobretudo – para as oportunidades de negócios na nova economia verde. O mar está subindo? Não tem problema: a América venderá as boias. Para produzi-las, será necessário um esforço maciço de inovação tecnológica, especialidade americana. E não há melhor guru para esse esforço do que o homem que nos deu a revolução dos computadores pessoais e o software no qual este texto foi escrito. Mais do que ninguém, Bill Gates tem a credibilidade para falar ao mundo empresarial e dizer “prestem atenção, isso é sério”. O empresariado tende a prestar.

Gates primeiro descreve brevemente o quadro da emergência climática, seus impactos atuais e previstos e argumenta a sobre a necessidade de zerar emissões líquidas no meio deste século. Constrói seus argumentos em torno de dois números: 51 bilhões (a quantidade de gases-estufa que emitimos por ano hoje) e zero (a quantidade que precisaremos emitir em 2050 se quisermos continuar vivos). E mostra que passar de 51 bilhões a zero em 30 anos será muito, muito difícil.

A maior parte do livro é dedicada a colocar uma etiqueta de preço nas transições de tecnologia. Embora algumas tecnologias limpas em setores como transporte, agricultura e geração de eletricidade hoje sejam competitivas ou tenham custo negativo (ou seja, sua adoção dá dinheiro), a corrida ao zero ainda demanda uma diferença de custo, que Gates chama de “prêmio verde”. Essa diferença é o que impede a adoção em escala de opções limpas em vários setores. Alguns são salgados: o “prêmio verde” para substituir combustível de navios, por exemplo, pode chegar a 601%. O da produção de cimento sem emissão de carbono pode ser de 140%.

Gates passeia por essas tecnologias, detalhando a dificuldade de ampliação de cada uma, para concluir com seu “sales pitch” sobre inovação. A eletricidade barata e firme, por exemplo, não poderá ser obtida apenas com renováveis como vento e sol, porque é preciso ter alguma energia “na base” para compensar a intermitência. Numa das passagens mais interessantes do livro, Gates argumenta que as baterias têm limites importantes dados pela física e que elas dificilmente atingirão a eficiência que lhes permita ser usadas para armazenar a luz de cidades inteiras. É uma boa ponderação em relação ao oba-oba de alguns mascates como Elon Musk, cujo otimismo implica em que tecnologias como baterias seguirão algo como a Lei de Moore (de Lei de Moore Gates entende). Uma solução, afirma, seria um novo tipo de reator nuclear – concebido por uma empresa na qual, claro, o autor investe.

Outra observação sagaz de Gates é que a obsessão com reduzir emissões em 2030 para ficarmos em linha com as recomendações da ciência pode criar uma armadilha: como investimentos em energia são comissionados a longo prazo, há o risco de fazer a coisa errada (por exemplo, trocar carvão por gás natural em vez de pensar em soluções de zero carbono) e ficarmos casados com os combustíveis fósseis por muito tempo.

O magnata do software tem sido muito criticado, em especial pelos chamados “ecossocialistas”, por defender a engenharia planetária (ou geoengenharia) como uma alternativa emergencial para a crise climática se tudo o mais falhar. Essa corrente de pesquisa, que envolve coisas como lançar sulfatos na estratosfera para reduzir a luz solar, é chamada por alguns cientistas (inclusive por um de seus pioneiros, o americano Alan Robock) de “risco moral”, por suas consequências imprevisíveis. Gates admite investir em empresas que pesquisam geoenhenharia, mas o tema é mencionado apenas de passagem e sem muita ênfase no livro.

Mais digno de crítica, mas inevitável, é o fato de as contas de mitigação de Gates serem todas apresentadas numa perspectiva americana. Por exemplo, o “prêmio verde” dos biocombustíveis nos Estados Unidos é alto porque lá não existe etanol de cana. O da siderurgia, porque aparentemente não existe aço verde (feito com carvão vegetal). Gates dá tão de barato que é dos EUA que partirão as tecnologias que salvarão o planeta que nem menciona opções mais baratas e eficientes de outras partes do mundo que poderiam ser vendidas aos EUA.

Seja como for, o receituário essencial de Como evitar um desastre climático é bom e precisa ser seguido: ciência, tecnologia, inovação e, o que é alentador vindo de um ícone do capitalismo, regulação e políticas públicas. Num bem-vindo distanciamento do anarcocapitalismo estúpido que dominou os EUA nos últimos quatro anos (e do qual Paulo Guedes não consegue se libertar), o homem mais rico do mundo defende gasto público, compras governamentais e incentivos (sim, caro Guedes, ele está falando em subsídio) quando a mão invisível não sabe para onde ir.

Gates fornece a trilha sonora para a manutenção da hegemonia econômica de seu país no Antropoceno, como é chamada a era atual, na qual os seres humanos são os maiores agentes de modificação planetária. É triste? Sim. Injusto? Definitivamente. A inicialização do criador do Windows e de outros virtuosos do empresariado progressista no debate climático teria vindo a calhar 15 anos atrás, quando ainda dava para evitar os piores efeitos do aquecimento global. Mas, uma vez que a transformação econômica capaz de nos salvar a todos terá necessariamente que ocorrer nos Estados Unidos, a gente pode guardar a nossa mágoa para quando o planetinha estiver seguro. Ou, alternativamente, fazer como os chineses: inovar para competir com os EUA no campo de jogo deles. Feliz do país que tem Bill Gates falando sobre clima. Quem não tem, infelizmente, se vira com Ricardo Salles.


Claudio Angelo é autor de “A espiral da morte – como a humanidade alterou a máquina do clima” (Companhia das Letras, 2016) e coordenador de comunicação do Observatório do Clima.