O jovem que em 12 de agosto de 2022 esfaqueou Salman Rushdie em um auditório em Chautauqua, cidadezinha no oeste do estado de Nova York, não é nomeado em Faca – reflexões sobre um atentado (tradução de Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira; Companhia das Letras; 230 páginas).

Nessa obra em que revisa o evento traumático e avalia suas consequências, Rushdie, hoje com 76 anos, refere-se ao assassino frustrado como “o A.”, abreviatura de “o Agressor” (Assailant, no inglês original).

Em passagens mais dramáticas, Rushdie associa o agressor ao Anjo da Morte. Felizmente, esse anjo torto não conseguiu levar sua missão a termo, mas causou estrago: feriu Rushdie repetidas vezes no rosto, no pescoço e no peito, deixando sequelas permanentes. A mais grave delas foi a perda da visão do olho direito, perfurado pela faca.

O A. teve seu momento de fama ao tentar cumprir uma fatwa (decreto religioso) do aiatolá Khomeini, que em 1989 condenou Rushdie à morte pelo crime de ter escrito Os versos satânicos, romance considerado ofensivo ao Islã. O escritor indiano – que também tem cidadania britânica e americana – considera que chamar o A. pelo nome seria prolongar essa fama imerecida.   

O autor de Os filhos da meia noite prefere celebrar o amor das pessoas que o ampararam durante seu calvário hospitalar (18 dias na UTI em um hospital de Erie, na Pensilvânia, para onde foi levado depois do atentado, e quase dois meses de recuperação em um hospital em Nova York). 

Rushdie fala com ternura de seus filhos, Zafar e Milan, de sua irmã Samin, de amigos escritores como Martin Amis e Paul Auster, e, sobretudo, da poeta americana Rachel Eliza Griffiths, com quem se casou em 2021.

É significativo que um livro tão afetivo, quase íntimo, tome como título o instrumento que por pouco não abreviou a felicidade doméstica descoberta pelo autor ao lado da nova esposa. A faca veio revelar que a felicidade é sempre precária. Depois de anos sob vigilância permanente dos serviços de segurança britânicos em Londres –  experiência que relatou no livro de memórias Joseph Anton – Rushdie sentia-se seguro nos Estados Unidos. Era uma ilusão.

Faca começa no momento do atentado e avança até setembro de 2023, quando Rushdie revisitou o auditório onde foi atacado. Cobre pouco mais de um ano da vida do autor, com vários recuos ao passado.

Naturalmente, procedimentos médicos ocupam boa parte da narrativa. Rushdie conta como foi o suplício de ter as pálpebras do olho cego fechadas com pontos cirúrgicos e fala da dolorosa fisioterapia para recuperar o movimento da mão esquerda, que foi rasgada pela faca.

Em meio a esse percurso doloroso, leem-se digressões sobre liberdade de expressão – princípio que Rushdie sempre defendeu com firmeza –, sobre Trump e a direita populista e sobre a beleza da arte sacra apreciada por um ateu, dentre outros temas. 

Há uma encantadora leveza no modo como Rushdie desenvolve seus argumentos: ele parece conversar com o leitor em voz suave, tentando persuadir, e não impor seu ponto de vista.

É uma pena que, em algumas passagens, a clareza do texto seja comprometida por descuidos de tradução e revisão na edição brasileira. Para ficar em um exemplo, na página 46 lemos que “algo estranho aconteceu à ideia de publicidade em nosso tempo surreal”, pois ela teria se tornado “indesejável” na era das redes sociais. O sentido aqui é oposto ao do texto original, que fala da “ideia de privacidade”, não de publicidade.

No sexto capítulo – são oito ao todo – Rushdie afinal confronta o homem que quase o matou. Trata-se de um interregno ficcional no meio de um livro de não-ficção: ele se imagina entrevistando o agressor na prisão.

É um diálogo áspero e truncado, em que o entrevistado se entrincheira em um entendimento estreito do Islã, enquanto sua vítima tenta demonstrar que há mais de uma maneira de interpretar os textos sagrados. 

Prolífico autor de 21 romances – o mais recente, Cidade da vitória, havia sido entregue à editora pouco antes do atentado – Salman Rushdie defende uma ideia profundamente humanista de literatura: a ficção como reino da multiplicidade de pontos de vista, da tolerância, da liberdade.

A faca, ao contrário, serve a um dogma único.