Um dos artistas mais importantes do século XX, o britânico Francis Bacon (1909–1992) fez tudo intensamente – sem concessões – na carreira e na vida pessoal.

“A vida dele era meio caótica e ele simplesmente fazia o que queria, bebia o que queria, dormia com quem queria; ele era um dissidente dentro da sociedade,” resumiu a artista inglesa Tracy Emin.

De uma família de elite, Bacon nasceu em uma fazenda na Irlanda, mas foi na Inglaterra onde viveu a maior parte da vida.

A exposição Francis Bacon: A Beleza da Carne – com curadoria de Adriano Pedrosa, Laura Cosendey e Isabela Ferreira Loures, e em cartaz até 28 de julho no MASP – traz ao Brasil pela primeira vez 23 obras do artista, do começo de sua carreira até o final dos anos 80.

Dada a dimensão de Bacon e a qualidade das obras, a exposição é sem precedentes por estes lados do globo. Poucos museus do mundo conseguiriam colocar de pé uma mostra dessa magnitude, obtendo tantos empréstimos e com curadoria própria.

Inserida no ano dedicado às Histórias da Diversidade LGBTQIA+ do museu, Beleza da Carne articula como a pintura inovadora do artista impactou o mundo e trouxe à tona a cultura queer.

Assumidamente gay numa época em que era ilegal ter relações homossexuais no Reino Unido (a descriminalização na Inglaterra veio em 1967, e na Irlanda, em 1982), Bacon foi expulso de casa aos 16 anos.

Morou em Berlim e Paris antes de se estabelecer em Londres – na mesma casa/estúdio em South Kensington onde viveu por mais de 30 anos.

Não teve educação formal artística. Aos 18, quando esteve em Paris, foi exposto a um universo cultural de vanguarda. A capital da arte, literatura e da música estava em ebulição, e atraía escritores e artistas da Europa e dos Estados Unidos, como Dalí, Hemingway e James Joyce.

Foi lá que Bacon conheceu o trabalho de Picasso e ficou surpreso. “Naquele momento pensei: vou tentar pintar também,” disse em entrevistas. Chegou a cursar aulas de pintura em grupo, mas não levou adiante. O que ele tinha não se ensinava: intuição.

Entre seus 20 e 30 anos, já em Londres, trabalhou como designer de móveis enquanto pintava. Seus primeiros quadros foram rejeitados, e ele os destruiu.

Quando conseguiu expor uma tela em uma galeria pequena, o jornal Daily Mail chamou o trabalho de “monstruosidades exóticas” — e Bacon destruiu tudo de novo. Ao longo da vida, jogou fora diversas obras que considerava medíocres.

Já próximo dos 35 anos, no pós-guerra – deprimido com a morte do pai, com a saúde debilitada pelas crises constantes de asma e desanimado com o fracasso artístico – atingiu o fundo do poço. Os amigos o ajudaram a reagir, e desta crise surgiu a masterpiece Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion, em 1944 – um divisor de águas em sua vida e carreira.

O tríptico foi exposto junto com obras de Henry Moore – que acabou ofuscado pela repercussão daquele jovem pintor desconhecido. A maioria dos visitantes detestou o trabalho de Bacon, embora reconhecessem que estavam diante de algo radical e revolucionário. Fúria e horror invadiam uma tela vermelha, com feras deformadas de bocas enormes.

“A dor é muitas vezes uma criatura mutilada sem boca,” definiu certa vez a escritora inglesa Jeanette Winterson.

No começo da carreira, Bacon tinha obsessão por bocas; talvez quisesse dar vazão à sua dor. “Sempre me emocionei muito com os movimentos da boca e com o formato da boca e dos dentes. As pessoas dizem que isso tem todo tipo de implicações sexuais, e sempre fui muito obcecado pela aparência real da boca e dos dentes… sempre esperei, de certa forma, poder pintar a boca como Monet pintou um pôr do sol.”

Os anos de formação do artista coincidem com os acontecimentos mais perturbadores do século XX, como a Segunda Guerra Mundial, Hiroshima e o Holocausto.

Em função da asma, Bacon não foi chamado para as trincheiras, atuando como ajudante da defesa civil  durante os bombardeios de Londres.

A infância violenta (além de apanhar do pai, assistia ao sacrifício de animais na fazenda), a desumanização e a destruição daquele período despertaram um fascínio por retratar a besta ou figuras parcialmente humanas em momentos existenciais extremos.

De modo perturbador, pintou seres desfigurados que gritam, lutam, se agarram, se torcem, se acasalam em uma estética crua e grotesca.

Uma obra fundamental que está exposta no MASP é da série acasalamento, intitulada Two Figures with a Monkey, de 1973, emprestado pelo Museu Tamayo, do México. Os corpos se fundindo em uma imagem repleta de ambiguidades: seria uma luta ou um desejo carnal?

Ateu, Bacon fez de símbolos católicos seus temas mais conhecidos: o Papa e o crucifixo. É comumente associado aos seus papas – obcecado pelo quadro de Velázquez – mas o que mais lhe atraía era o crucifixo. Os papas representavam não só o poder religioso como também a autoridade paterna, e Bacon questionava todo poder hereditário ou garantido. Com relação ao crucifixo, interessava-se pelas obras de grandes mestres como Rembrandt e pela forma como os outros observavam e participavam do sacrifício de animais ou de pessoas na crucificação.

Homem de boas maneiras, vaidoso (estava sempre impecável, do cabelo à pele e às roupas) e muito culto, circulava nas melhores rodas sociais de Londres. Teve uma intensa amizade com o pintor Lucien Freud (até cortarem relações completamente) e com o escultor Alberto Giacometti até sua morte em 1966.

Leitor de mitologia, filosofia e poesia, Bacon tinha como referências T. S. Eliot, Joseph Conrad e Friedrich Nietzsche.  Acordava às 6 da manhã todo dia para trabalhar no estúdio. Depois do almoço, ia de ônibus ou metrô para o Soho, onde encontrava amigos, bebia, jogava e flertava. Sempre que vendia quadros, usava o dinheiro para viajar. Só voltava a trabalhar quando gastava tudo. Como jogava com frequência, sua situação financeira nunca foi estável.

Bon vivant ao extremo, foi apelidado de monstro sagrado. Buscava incessantemente novos amantes e experiências sexuais diversas, mas viveu por anos um grande amor com Peter Lacy, que morreu de overdose um dia antes de sua grande retrospectiva na Tate (1967).

A relevância de Bacon na história da arte é um consenso, e por isso ele é objeto de tantos estudos e biografias. Um mestre que transformou sua própria dor – e a dor coletiva do século – em uma arte singular e genial.

E até porque os fantasmas do seu tempo ainda nos atormentam – guerras, feminicídio, antissemitismo, racismo e homofobia, dentre outras violências e injustiças –  Bacon permanece atual.

Esta exposição do MASP é uma oportunidade única, a ser aproveitada com atenção e profundidade. Ao se preparar para a visita, tenha em mente o verso do poeta favorito do artista, T.S. Eliot:  “Oh my soul, be prepared for the coming of the Stranger. Be prepared for him who knows how to ask questions.”