O rap está a léguas de ser um gênero musical de que eu goste, e até semana passada eu mal conhecia o Emicida. Mesmo assim, despi-me de qualquer preconceito para assistir ao documentário “AmarElo – É Tudo Pra Ontem”, disponível na Netflix e aclamado pelo público e pela crítica.
Comecei o ano lendo o primeiro volume do “Escravidão”, do Laurentino Gomes. Entre tantas verdades inconvenientes, uma me envergonhou em particular: nós, brasileiros de 2020, somos todos descendentes de escravos ou de donos de escravos, e esta condição ainda e quase sempre define o que somos hoje.
A consciência desse fato deveria ser suficiente para que qualquer ser branco, pensante ou sentente (neologismo detected!), passasse a se definir como “racista em desconstrução”. Infelizmente, muitos dos meus amigos acham que isso é coisa de “gente de esquerda” ou “ideologia importada dos EUA”.
Emicida se apresenta como um preto que nasceu e foi criado a quilômetros do asfalto, nas quebradas da periferia de São Paulo. Que ele seja um cara indignado com as injustiças sociais do seu país é algo bastante natural. Que ele tenha alcançado sucesso fora dos seus limites geográficos é um feito por si só. Que ele tenha conseguido manifestar sua indignação e transmitir sua mensagem não pelo ódio, mas principalmente pelo afeto, é quase um milagre.
“AmarElo” é o nome do seu último disco, lançado em outubro de 2019. É um daqueles álbuns conceituais, ambiciosos, pensado e trabalhado de forma intensa, com o objetivo de contar uma história e não apenas compilar uma sequência de músicas.
O mote do documentário da Netflix é o show promocional do disco, feito no Teatro Municipal de São Paulo, cuja proposta era justamente ocupar um espaço que sempre foi negado a pessoas negras ou da periferia.
A partir daí, Emicida faz um balanço histórico e reflexivo da situação do negro no país, recheado de fatos históricos. Novamente senti-me envergonhado por desconhecer completamente alguns dos personagens e fatos ali mencionados, mesmo tendo estudado em um dos melhores colégios do Brasil. Anos depois, poderia ter me educado sobre o assunto de outra forma, mas isso também não aconteceu. Até agora.
No documentário, Emicida demonstra sua consciência de todas as injustiças cometidas contra os brasileiros negros. Não há como não se tornar uma pessoa cheia de raiva ou, pelo menos, de indignação. Talvez por sua própria natureza, ou talvez por ter consciência de que o país já se encontra suficientemente polarizado, ele decide colocar o afeto, o amor e o carinho à frente de qualquer ressentimento ao expressar sua arte.
Sua generosidade é tanta que ele divide seu espaço e sua pauta com outras categorias discriminadas. Assim, reconhece que várias são as camadas e as dimensões do preconceito e que, se a luta de um negro já é difícil, mais árduas ainda são as batalhas das mulheres e da comunidade LGBTQ+ negras.
O resultado impacta e emociona – obviamente, para quem se abrir para o impacto e emoção.
Não fosse tudo o que eu disse suficiente, o documentário é um luxo de direção, edição e fotografia. Lindas imagens. Emoção à flor da pele.
Forjado em preconceitos, que tento desconstruir diariamente, jamais poderia imaginar que de um cantor de rap pudesse sair tanta delicadeza. Sou pai de uma menina de 7 anos. Quando soube que Emicida escreve para crianças, encomendei seus livros infantis.
Posso estar sendo ingênuo em supervalorizar o poder da arte, mas tudo indica que a imensa maioria do país quer mais diálogo e menos truculência. AmarElo me aproximou de um mundo e de uma realidade que eu desconhecia, daí meu encantamento por todo o seu potencial.
Este documentário inocula a esperança de que, com ternura, é possível dialogar com quem é ou pensa diferente. Quem sabe até aprender a amar. Este é o único caminho possível para reverter nossa caminhada em direção ao emburrecimento e ao embrutecimento.
Nem preciso dizer que o filme deve ser evitado por quem não tem empatia pelo outro. Por quem acha que o país está no rumo certo. Por quem perdeu a capacidade de se indignar.
Em AmarElo, Emicida toma emprestados versos de Belchior que talvez sejam a melhor síntese de 2020: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro / Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.”
Que em 2021 possamos ir além do ‘não morrer’. Para todo mal — doença, ignorância, intolerância, indiferença ou preconceito — há de haver uma cura.
Bruno Resende Rabello escreve sobre cultura para o Brazil Journal.