Símbolos são importantes. Pessoas, ideias e valores ganham outra dimensão — extraordinariamente maior e mais potente – quando se tornam símbolos.
Nuremberg, a cidade no sul da Alemanha, foi escolhida por Adolf Hitler para sediar as reuniões do Partido Nacional-Socialista que fundara – o conhecido Partido Nazista. Em 1933, Hitler torna-se chanceler, isto é, o chefe do governo alemão. Atento aos símbolos, passou a se qualificar como Führer, que significa “condutor”, “guia”.
Em Nuremberg, em 15 de setembro de 1935, foram publicadas as leis abjetas que transformaram práticas antissemitas em regras de Estado – as chamadas Leis de Nuremberg.
Com o fim da Guerra, em 1945, vieram à tona os horrores do Holocausto. Hitler se suicidou em seu bunker, pouco antes da rendição alemã. Havia, contudo, diversos outros líderes nazistas vivos, boa parte deles presos. Era necessária uma reação. Para muitos, compreensivelmente emocionados com os horrores, os criminosos nazistas mereciam execução sumária. Para outros, deveria haver um julgamento isento, a fim de apurar responsabilidades e punir os atos de agressão à humanidade.
Em agosto de 1945, França, Reino Unido, Estados Unidos e União Soviética criaram um Tribunal Militar Internacional para julgar os principais líderes nazistas. Além das violações às leis de guerra, o Tribunal examinaria também os crimes contra a humanidade. Foi a primeira vez em que iniciar o conflito armado, por si só, foi objeto de apreciação por um tribunal.
Cada um dos quatro países indicou um promotor. O grupo foi liderado por Robert H. Jackson, então juiz da Suprema Corte dos EUA. Em relação aos juízes, também as quatro nações referidas apresentaram um membro do tribunal, estabelecendo-se que, em caso de empate, o voto do juiz inglês preponderaria.
Entre os réus mais famosos estavam Herman Göring, o segundo na hierarquia do Estado Nazista, Rudolf Hess, vice-líder do Partido Nazista, e Wilhelm Keitel, o chefe das forças amadas.
Como símbolos são importantes, Nuremberg, pelo que representou ao nazismo, foi escolhida para sediar esse tribunal internacional que julgaria exatamente os líderes do movimento. Não poderia haver outro lugar mais apropriado.
Os procedimentos em Nuremberg não seguiram regras militares, mas normas conhecidas de direito internacional, com elementos de direito continental, aplicados na Europa, e do direito anglo-saxão, praticados na Inglaterra e nos Estados Unidos.
As discussões, no âmbito do julgamento de Nuremberg, foram sofisticadas. Entre outros argumentos, a defesa alegou que, em 1941, a Alemanha havia declarado a invalidade das convenções internacionais relacionadas ao comportamento das nações em épocas de guerra, porque a União Soviética não as havia assinado.
Tentavam, assim, escapar do dever de observar regras internacionais. Contra esse argumento, falaram mais alto os conceitos trazidos por Hersch Lauterpacht, o promotor indicado pelos ingleses. Lauterpacht era judeu nascido na Ucrânia, onde iniciou seus estudos em Direito. Não conseguiu concluir seu curso por conta do preconceito antissemita. Acabou migrando para a Inglaterra, onde construiu uma sólida carreira jurídica especializada em direito internacional. No julgamento de Nuremberg, Lauterpacht advogou que os crimes contra a humanidade deveriam ser examinados a partir de princípios de justiça, que se colocavam acima de qualquer regramento nacional ou internacional.
Lauterpacht, de certa forma, repetia Antígona, a heroína da clássica peça teatral de Sófocles.
Contrariando a ordem de seu tio Creonte, tirano de Tebas, Antígona enterrou o cadáver de seu irmão. A moça assumiu a violação da regra imposta sob o argumento de que havia normas superiores, ditadas por valores mais elevados: ninguém poderia ficar sem sepultura.
Em Nuremberg, reconheceu-se que a (alegada) ausência de adesão a tratados era irrelevante quando diante de temas fundamentais, como o genocídio.
A sentença foi proferida em setembro de 1946. Doze acusados foram condenados à morte, entre eles Göring e Keitel. Três receberam a sentença de prisão perpétua. Quatro tiveram penas que variaram entre dez e vinte anos de prisão. Finalmente, o tribunal absolveu três. Estes últimos, Franz Von Papen, Hans Fritzsche e Hjalmar Schacht eram, respectivamente, um político, o chefe da imprensa e um banqueiro que ocupou o cargo de ministro das finanças.
Em outubro de 1946, as penas de morte foram executadas. Göring, contudo, na véspera da data marcada para o cumprimento de sua pena, matou-se na prisão, ingerindo cianureto.
Na sequência desse julgamento, ocorreram outros de natureza semelhante. Houve um contra juristas, outro contra médicos, e ainda um no qual empresários que apoiaram os nazistas se sentaram no banco dos réus. Em todos, apurou-se a responsabilidade por auxiliar abusos e atrocidades relacionadas no período da guerra.
O conceito de respeito e observância a valores universais independentemente de leis ou tratados foi fundamental para que, pouco adiante, em 1948, as Nações Unidas adotassem a Declaração Universal de Direitos Humanos.
O tribunal de Nuremberg serviu de modelo para diversos outros. Regras estabelecidas naquela ocasião definiram os conceitos de crimes de guerra e a forma como julgamentos dessa natureza devem ocorrer.
Embora o estabelecimento de parâmetros, tanto formais como materiais, para julgamentos de guerra tenha sido um avanço civilizatório, houve um aspecto ainda mais relevante: o que esse julgamento simbolizou.
Evidentemente, não é novidade na história da humanidade que os derrotados de um conflito militar recebam punições. Quase como uma regra, essas sanções são cruéis, sem qualquer oportunidade de defesa. “Ai dos vencidos” – Vae victis – diziam os romanos.
No caso específico, ao fim da Segunda Guerra, quando vieram à tona a carnificina e o genocídio ocorridos nos campos de concentração nazistas, a opinião pública, uníssona, ficou perplexa. A humanidade revelara sua pior face, e uma reação se fazia necessária. Contudo, dar aos líderes nazistas o mesmo tratamento que eles impuseram a suas vítimas representaria um retrocesso. Seria a demonstração de que nada se aprendeu. O mundo deveria superar esse episódio demonstrando que justiça não se confunde com vingança.
Os nazistas deveriam ser julgados observando-se o devido processo legal. Foi-lhes dado o direito de defesa. As acusações foram examinadas por juízes imparciais – e a prova disso se vê na diferença das penas recebidas, e até mesmo na absolvição de alguns dos réus.
No caso de Hess, como ele tentara fugir da Alemanha ainda com a guerra em curso e por conta de sinais de perturbação mental, o tribunal o sentenciou à prisão perpétua (e não à morte). Para muitos, foi um ato de misericórdia. Ocorre que a misericórdia, refletida e ponderada, integra a justiça.
2025 marca o aniversário de 80 anos desse importante julgamento. O que o mundo teria sido se não houvesse um regular processo legal para apurar a responsabilidade dos líderes nazistas? Qual seria a mensagem para as gerações se, ao fim da Segunda Guerra, tivessem assassinado, sem real chance de defesa, os líderes nazistas?
Ao ser deposto em 1945, Benito Mussolini teve seu cadáver mutilado e exposto, pendurado para a execração pública. Já o romeno Nicolau Ceausescu, ao ser derrubado em 1989 foi – depois de um fugaz julgamento de fancaria – prontamente fuzilado, junto com sua mulher Elena. O líder líbio Muammar Gaddafi, fuzilado, teve o corpo exibido como troféu por quem tomou o poder.
Nenhum desses homens públicos recebeu, ao fim de seus governos, um julgamento minimamente idôneo. Há outros diversos, tristes exemplos, nos quais a apuração isenta de responsabilidade perde para uma inflamada reação de desforra, por motivos políticos ou emocionais.
O julgamento de Nuremberg oferece um poderoso símbolo de que a civilização anda para frente quando superamos desejos de vingança e tratamos as pessoas – mesmo aquelas que cometeram os atos mais detestáveis – como gostaríamos de ser tratados. Com justiça.
José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados.