FORTALEZA – Os 52 mil moradores da Granja Lisboa vivem numa das regiões de menor desenvolvimento social desta capital. Ruas precárias, esgoto a céu aberto – o cenário ali é o retrato típico de tantas comunidades onde o estado não cumpre sua função básica de atender os mais vulneráveis.

Humilde hoje, o bairro era ainda mais pobre 30 anos atrás, quando Nidovando Pinheiro, então com 25 anos, começou ali sua extraordinária e improvável trajetória.

Nido, como os amigos o chamam, alugou um ponto comercial de 32 m² no bairro para abrir seu primeiro negócio. Hoje, sua Nidobox, uma rede de oito lojas aqui em Fortaleza, fatura mais de R$ 200 milhões/ano – e já é a nona no ranking de um estado onde gigantes como o Carrefour e o GPA têm presença tímida.

Nidovando PinheiroNo ano passado, quando outro gigante, o Grupo Mateus, chegou ao Ceará, correu a notícia que o grupo tentou obter junto ao governo cearense a mesma isenção fiscal de que goza no Maranhão. As associações comerciais do Ceará reagiram, e até agora o incentivo não saiu.

“Eles são bem-vindos, desde que tenham o mesmo benefício que nós temos,” disse Nido, que preside a Associação Cearense de Supermercados (Acesu). “Queremos que eles paguem os mesmos impostos.”

Nido contou ao Brazil Journal sua trajetória de persistência e superação – uma viagem de 55 anos da escassez à abundância.

Apesar de admirável, sua história está longe de significar que a mobilidade social brasileira seja uma maquininha lubrificada.

Para cada Nido que conseguiu escapar da lavoura para construir um mini império, há milhões de Nidos sabotados por uma escola pública fraca, e milhões de jovens que nunca chegarão a empreender porque o Brasil está mais empenhado em garantir “direitos adquiridos” injustos e subsídios ao andar de cima do que em promover a igualdade de oportunidades. 

Apesar deste Brasil – e não por causa dele – Nido chegou lá. 

Essa é a sua história:


A INFÂNCIA

Sou de Jaguaretama, uma cidade a 230 km aqui de Fortaleza. Somos 10 irmãos.

Praticamente não tínhamos acesso à escola. Quando completei 7 anos, meu pai me levava para trabalhar na roça. A gente plantava e depois ia para a escola. A gente ia porque tinha merenda no colégio. Era um grande incentivo.

A gente ia para as aulas por um certo tempo, mas quando chegava o período da colheita, nosso pai nos tirava da escola.

Meu pai e minha mãe são analfabetos. Não é que eles não queriam que a gente estudasse. Eles achavam que o estudo era importante. Mas tínhamos que ajudar na colheita.

Quando eu tinha 12 anos de idade, meu pai se mudou para outra fazenda. Lá a alimentação era melhor. Tínhamos uma boa alimentação. Graças a Deus.

Nesse tempo, uma irmã minha foi morar com uma família de Fortaleza. Ela cuidava da casa. Em troca, tinha estudo, alimentação e roupa.

Depois foi uma outra irmã, para a casa de um parente nosso. Ele era o proprietário de um mercadinho. Depois me escolheram para ir também viver com eles. Meu pai não queria deixar, porque eu cuidava do gado. Minha mãe disse: temos que deixar os nossos filhos seguir os caminhos deles.

Quando eu arrumei minha mala… não era uma mala, era um saco. Eu olhei para trás e disse: Tenho uma obrigação de ajudar essa família.

EMPREGO NA CAPITAL

Cheguei em Fortaleza com 17 anos. Não sabia ler nem escrever. Conseguia fazer meu nome, mas muito ruim. Para ler uma palavra, eu demorava muito tempo para juntar as letras. Para mim foi um desafio muito grande, porque, quando eu fui estudar, as escolas públicas não me aceitavam. Já estava totalmente fora da faixa. Fui estudar numa escola particular.

Era um grandão no meio de crianças pequenas. Me sentia muito incomodado.

A pessoa que me acolheu, o proprietário do mercadinho, falava assim: “Meu filho, nunca é tarde para aprender”.

Passei quatro anos trabalhando nesse mercado. Não tinha salário. Tinha exatamente o que a minha irmã tinha: roupa, estudo, alimentação. Eles eram bons com a gente. Não tinha um salário fixo, mas me dava um dinheiro para eu ir na praia, num jogo de futebol, comer uma pizza.

Trabalhei para caramba nessa época. Descarregava sacos de 50 kg na cabeça. Doía muito. Mas tinha medo que me mandassem embora. Chorava de noite, escondido.

Acordava às duas da manhã para ir pra Ceasa, arrumava as frutas, botava o preço, merendava, voltava para loja, depois ia para o colégio, voltava para loja novamente.

Quando eu fazia entrega do mercadinho, guardava todo o dinheiro, colocava num envelope, e no final do mês mandava para o meu pai.

Nunca desisti. Com pouco tempo, comecei a trabalhar como negociador na Ceasa, comprando mercadorias. Depois de 7 anos, eu já era o gerente da loja. Fiquei mais 4 anos.

O mercado se chamava Mercantil Pinheiro. Era uma loja só, tinha uns 400 m².

No supermercado, eu comecei a ter salário depois de 4 anos. Passei muito tempo ganhando salário mínimo. Aí, quando eu era gerente, nem sei se chegava a 2 salários mínimos. Para mim, eu achava que era muito. Eu gastava muito pouco.

Depois de algum tempo, a família com quem eu morava me emprestou um apartamento pequeno. Aí eu comecei a namorar e a minha esposa engravidou. Pensei: “Agora é que eu preciso trabalhar mesmo.”

Quando eu completei 11 anos e 7 meses trabalhando naquele mercado, eu disse para o casal: “Agora eu quero montar meu primeiro negócio. Não estou ganhando mal, mas tenho uma família muito grande. Vou arriscar montar meu negócio”.

O PRIMEIRO NEGÓCIO

Fui até um bairro, um dos maiores bairros aqui de Fortaleza, sondar alguns pontos comerciais. Encontrei um pequeno, de 32 m². Tinha um piso grosseiro, a parede não era rebocada. Tinha várias infiltrações.

Eu já vinha me preparando para abrir o negócio, tinha comprado algumas caixas de mercadoria. Estava fazendo um estoque.

Quando eu saí do Mercantil eu tinha 25 anos. Hoje eu tenho 55.

Abri meu negócio no bairro Granja Lisboa, um bairro de classe DE, mais para E.

Passou o primeiro mês, o segundo mês, e nada de a gente conseguir vender. Eu tinha comprado 2 sacos de feijão de corda de 60 quilos. Meu Deus, como é que nós vamos fazer? Eu falo para minha irmã, estou com medo. Aí o feijão começou a “esquentar”. Quando esse feijão esquenta, ele começa também a criar um inseto. Nós chamamos de gorgulho. Bateu um desespero.

Um dia passou um carro de som fazendo propaganda. Eu chamei o rapaz do carro, peguei o feijão e alguns outros itens. Falei, vamo tentar. Era um sábado de manhã. Rodamos duas horas anunciando os produtos. Quando eu voltei, o mercadinho estava lotado.

Mas para lotar não precisava de muita gente, não é? Nesse dia eu vendi uns 120 kg de feijão. O feijão vendi todinho na oferta. Com os gorgulhos saindo de dentro do tambor e tudo. Foi ali que começou.

Com sete meses eu já tinha um terreno em uma esquina e comecei a me preparar. Dentro de um ano, a gente fez um mutirão:  veio meu pai, veio meu sogro, e a gente já começou a construir um novo mercadinho. Tinha 70 m². Um negócio lindo para a gente, num terreno que comprei no mesmo bairro.

Já deixei uma estrutura para poder fazer minha casa em cima, que é um sonho de muito varejista. Comecei a trazer a família. Já tinha trazido meu pai do interior, ele não estava mais trabalhando na fazenda. Botava irmão, cunhado para trabalhar. Se fosse hoje, eu seria preso. Exploração de menor.

Comprei uma casa muito simples para o meu pai. Logo em seguida passei por uma situação financeira difícil. Achei que ia quebrar. Eu não tinha noção como funcionavam as contas, com aquela inflação louca.

Aí eu fui atrás de um primo pedir dinheiro emprestado. Quando fui pegar o dinheiro, ele me deixou mais de 10 horas esperando. Senti um certo desprezo. Mas para mim foi muito importante. Depois de 10 anos, fui eu que emprestei dinheiro para ele. Não tenho mágoa. Ele faleceu e me devia um dinheiro. Está tudo perdoado, porque para mim o dinheiro dele foi importante naquele momento. 

FAMÍLIA

Meu irmão que veio trabalhar comigo quando tinha 8 anos hoje é um empresário do ramo de confecção. Graças a Deus está muito bem. Para mim, hoje ele me tem como um pai, como educador e orientador. O meu cunhado é meu diretor de operações, um menino que tem crescido muito.

Nós não tínhamos perspectiva de vida nenhuma, porque nós éramos muito pobres. A tendência era casarmos, termos vários filhos, como meu pai teve, e ficarmos por lá, trabalhando na roça.

Tenho um primo com uma história belíssima também. O pai dele morreu quando ele tinha 12 anos. Nós éramos vizinhos. Somos primos quase irmãos. Veio para Fortaleza, trabalhou de zelador e como vendedor de churrasquinho. Hoje tem 3 lojas, um cara muito bem sucedido.

Na nossa associação de varejistas aqui em Fortaleza, 90% dos caras têm histórias parecidas com a minha. Não tem nenhum que recebeu herança.

NOVOS PROJETOS

Quero abrir mais duas lojas. Não financio tudo com caixa próprio. Faço um misto.

Em 2017, fiz um grande investimento, de quase R$ 10 milhões, 50% de recurso próprio e 50% dívida. Foi uma dívida muito arriscada. Prazo quase de capital de giro, de 24 e 36 meses. 

Quando eu estava buscando recursos, as minhas garantias na avaliação do banco eram muito baixas.

Até a minha sexta loja, eu não tinha pesquisa nenhuma. Hoje tem uma pessoa que eu converso muito, ele entende muito de mercado. Mas ele é muito medroso. Pessoa do meu círculo de amizade. Agora mesmo ele tem dito para mim: “Não se endivida que o negócio agora não está bom”.

Tenho uma holding para administrar os meus bens. Quem montou foi a contabilidade.

Estou confiante no meu empreendimento, uma área de 14.000 m² em Maracanaú, uma região bem desenvolvida, colada em Fortaleza. É o meu projeto para 2023.

Quero fazer um centro comercial e alugar pra várias lojas. Quero trazer a Magazine Luiza. Meu pensamento é trazer grandes lojas.

Os loteamentos no entorno já estão todos vendidos. Vão começar a construir. Com certeza será um grande negócio. Teremos 140 vagas de estacionamento. Quero fazer um projeto bacana.

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