O pai de Ney Matogrosso era um sargentão machista, homofóbico, e Ney passou a ser “o espelho ao contrário do pai,” diz o biógrafo do artista.
Pai e filho brigaram muito até o dia do ‘basta’. Aos 17 anos, Ney saiu de casa e pegou o caminho do mundo.
“Ele aprendeu com o pai a erguer a cabeça,” me diz Julio Maria, que está lançando “Ney Matogrosso” (452 páginas, Companhia das Letras, R$ 85).
É a segunda biografia de Julio, que já se debruçou sobre a vida de Elis Regina em “Nada será como antes.”
O novo livro é uma biografia independente, resultado de cinco anos de pesquisa e mais de 200 entrevistas, inclusive com Ney.
Na orelha, Caetano Veloso lembra que Ney “desafiava a linha de demarcação de gênero — e se mostrava impressionantemente desencanado, franco, calmo e claro.”
Como ser humano, Ney foi vanguarda antes dos millennials inventarem o ‘non-binary gender’.
Quando o ouvi pela primeira vez nos Secos e Molhados, senti uma janela de novidade — forte e definitiva naqueles anos 70. Eu, menina, descobrindo o mundo. Ele, com a sua voz rara em cantores: contralto, a mais grave das variedades da voz feminina. Estava ali estabelecido o rompimento de fronteiras vocais. Eu não tinha a menor ideia de nada disso na ocasião, apenas me deixei levar por ele. Meu pai havia morrido, e eu me permitia ficar sozinha no quarto de adolescente a ouvir aquele algo novo.
Ney Matogrosso perdeu namorados e amigos para o vírus da aids, mas a sua sempre foi “a luta limpa,” na expressão de Caetano.
Falei com Ney essa semana, por telefone. Ele, recluso em seu apartamento no Leblon. Eu, a poucas quadras dele. Aprendemos na pandemia a entender o longe e o perto em diferentes geografias e repensamos distâncias. Foi uma conversa afetiva e intimista. A voz de Ney segue igual à que ele tinha nos anos 70, quando explodiu como uma supernova no universo musical brasileiro.
Para escrever o livro, a pesquisa de Julio Maria foi nas entranhas de uma história de liberdade e de coragem, duas atitudes que não faltam ao artista que veio ao mundo em Bela Vista, cidadezinha ainda anônima na fronteira com o Paraguai. (clique abaixo para ouvir)
Não é difícil imaginar o clima daquele Brasilzão dos anos 40. “Era aquilo mesmo, era tiro, revólver, fronteira,” lembra Ney.
Recolhido desde o início da pandemia, ele me disse que o ato de cantar foi de sobrevivência emocional. Decidiu gravar músicas que estavam adormecidas há anos dentro dele.
O novo álbum “foi um pretexto para me mover fora dessa e uma maneira de festejar os oitentinha.” (clique abaixo para ouvir)
Ney se cuida muito, faz check-ups anuais e, segundo o seu médico, “por dentro ele tem 55 anos.”
Mesmo vacinado, segue quieto em casa. Cansou das séries, prefere rever filmes e anda mergulhado na literatura. (Me sugeriu o “O destino da África”, de Martin Meredith.)
Aos poucos, corpo e voz foram construindo esse belo artista. Me pergunto que sentimentos invadem Ney à frente do espelho – olho no olho – a maquiagem tomando forma, o corpo esguio pronto para a ação cênica no processo de transformação de Ney de Souza Pereira para Ney Matogrosso.
Olhando adiante, surge o desejo, depois de 17 meses em isolamento: retomar, assim que possível, ‘O bloco na rua’, sua turnê interrompida.
Ney Matogrosso está saindo mais forte dessa pandemia.