Um cometa do tamanho do Everest está em rota de colisão com a Terra, e os cientistas que anunciam a iminente devastação da vida no planeta são ignorados pelo governo americano e ridicularizados pela mídia.

Dá para saber já no trailer que este é o argumento do muito comentado Não olhe para cima (Don’t look up), que a Netflix lançou na véspera de Natal.

No entanto, o filme de Adam McKay – o diretor de comédias anárquicas estreladas por Will Ferrell (O Âncora; Ricky Bobby, a toda velocidade) que fez uma bem-sucedida transição para a sátira política (A grande aposta; Vice) – não quer alertar para corpos celestes desgarrados.

O cometa funciona como uma hipérbole, uma representação exagerada de ameaças reais – em particular, o aquecimento global e a pandemia da covid-19 – cujas soluções são emperradas pelo negacionismo científico. E isso não é uma mensagem oculta que o espectador precise decifrar.

“Este é um filme populista”, admitiu McKay em entrevista à Vanity Fair. O recado simples e claro – ou “populista”, como quer o cineasta – não constitui necessariamente um defeito.

Dr. Fantástico (1964), a comédia de Stanley Kubrick que McKay arrolou entre seus modelos, também era muito franca em seu ataque à insanidade da corrida armamentista durante a Guerra Fria.

A sátira pode até dispensar a sutileza, mas nunca a inteligência. Não olhe para cima permite que certo espectador se sinta inteligente ao se alinhar aos heróis da história, os cientistas interpretados por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence. Mas seu humor tende a ser simplista e ingênuo. Ou, numa palavra coloquial, tolinho.

A princípio, McKay tinha suas baterias voltadas apenas contra o negacionismo do aquecimento global. Com um mês de filmagem, veio a pandemia, que teria obrigado a história a ficar “mais doida”, o diretor relatou à Vanity Fair.

A grande vilã é Janie Orlean, a cavilosa mas obtusa presidente americana interpretada por Meryl Streep. Essa versão feminina de Donald Trump é assessorada na Casa Branca por seu próprio filho, Jason (Jonah Hill).

A comédia naufraga quando se ampara nesse núcleo político, em parte pelos cacoetes irritantes que Hill traz de comédias juvenis, em parte porque é tarefa dura ridicularizar o que por natureza já é ridículo.

Cate Blanchett mostra mais graça como Brie Evantee, estrela de um programa de entrevistas que tem um caso com o astrônomo Randall Mindy (DiCaprio). Os melhores desempenhos cômicos cabem a dois personagens secundários:  Peter Isherwell (Mark Rylance), um magnata das Big Tech – mistura de Elon Musk com  Steve Jobs – que se ofende quando o chamam de “empresário”; e Yule (Timothée Chalamet), um skatista desmiolado que se apaixona por Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), a astrônoma que descobriu o cometa.

A exaltação da ciência é demasiado didática nesse filme em que termos como “revisão por pares” (peer review) pipocam de forma canhestra nos diálogos. A despeito de suas falhas e hesitações, os cientistas são retratados como heróis cercados por empresários inescrupulosos e políticos demagógicos.

Surge aqui um contraste curioso com Armagedom, no qual os heróis são operários de plataformas petrolíferas chamados pela Nasa para destruir um meteoro gigante que se aproxima da Terra.

No filme estrelado por Bruce Willis em 1988, o americano blue collar salva o planeta; em Não olhe para cima, ele só engrossa a massa ignara que segue a presidente Orlean. Talvez o mundo tenha mesmo mudado.

No campo oposto à ação descerebrada de Armagedom, o lento e sorumbático Melancolia (2011) também fornece um bom termo de comparação para Não olhe para cima. No filme de Lars von Trier, Kiefer Sutherland faz um homem que acredita nas previsões científicas segundo as quais a Terra não vai se chocar com o planeta Melancolia – mas os cientistas estavam enganados. Longe de qualquer negacionismo, esse personagem nos lembra que ter fé na ciência é uma atitude bem pouco científica.

No esforço louvável de combater o negacionismo, Não olhe para cima professa uma fé ingênua na ciência. Nos momentos em que abandona a pregação, porém, o filme mostra que há beleza nos pequenos rituais da vida humana até quando a ciência e a política parecem não oferecer salvação.

Mesmo que escapemos de pandemias, meteoros e mudanças climáticas, resta o fato científico de que daqui a um bilhão de anos o sol vai se expandir, consumindo nosso pobre planeta. Ainda assim, terão valido a pena todas as risadas que demos com amigos no boteco e os brindes que erguemos em festas de família. O mundo vai acabar, mas não agora.