Na reta final da votação pelas companhias da quinta reforma do Novo Mercado, a grande discussão deixou de focar nas novas regras propostas pela B3 – e sim no sistema da votação que vai decidir as mudanças. 

A Abrasca – que representa as empresas listadas – está questionando o modelo de votação, em que as propostas são aprovadas se menos de um terço dos participantes do Novo Mercado discordarem, e em que as abstenções hoje contam como voto a favor. 

No modelo de votação, “a inação dos participantes é suficiente para definir mudanças estruturais, o que é um risco a todas as companhias nele listadas”. A Abrasca disse que seus associados formaram um consenso de que as mudanças “devem ser aprovadas pelo voto afirmativo da ampla maioria.” 

Além da questão da forma, há a questão da substância.

A Abrasca também está recomendando voto contrário à maior parte das mudanças nas regras que regem os conselhos de administração, alterando seu posicionamento anterior, de novembro, que era favorável. 

Agora, a entidade diz que as regras sobre os conselhos “devem ser voluntárias de cada companhias e seus stakeholders”.

O sistema de votação para as regras do Novo Mercado é o mesmo desde sua criação há 25 anos, e estabelece que qualquer mudança não será implementada se ⅓ das 190 companhias listadas no segmento rejeitarem a proposta – independentemente do quórum da votação, uma vez que abstenções contam como voto a favor.

Pablo Cesário, o presidente-executivo da Abrasca, disse que a mudança no posicionamento da entidade se explica pela evolução do processo decisório dentro das companhias. 

“Os primeiros debates foram conduzidos por técnicos, das áreas de governança e jurídica; agora, no momento da votação, o assunto está sendo analisado pelas pessoas mais seniores das empresas e pelos conselhos,” Cesário disse ao Brazil Journal. “Quando a discussão chegou ao alto escalão, passou a ser menos sobre a atual revisão para se concentrar no processo de votação.”

Segundo Cesário, o Novo Mercado cresceu no número e na diversidade de companhias, mas o processo decisório – por certa inação das associadas – “transformou-se num risco elevado sob a perspectiva de como esse segmento vai evoluir daqui para a frente”. 

A questão também é matemática.

A última reforma mais relevante no Novo Mercado foi em 2017, quando o segmento contava com 129 empresas e o veto de 42 delas impediria qualquer alteração.

Hoje, o Novo Mercado reúne 190 companhias, e o veto depende de 64 delas.

A Abrasca tem entre seus associados 69 empresas do Novo Mercado – incluindo a B3 – que representam 36% do total do segmento. O voto das empresas é dado após uma deliberação de seus conselhos.

“Se um terço das empresas não se mobilizar – e isso realmente não é trivial – a regra muda. É um trabalho enorme mobilizar as companhias. Estamos todos em modo sobrevivência, com a taxa de juros em quase 15%,” disse Cesário. “E a penalidade para quem não atender as regras é uma OPA, que vai quebrar a empresa.”

Para deixar o segmento, a empresa precisa fazer uma oferta pública de aquisição de ações em condições aprovadas pelos minoritários, sem o voto do controlador.

O questionamento ao sistema de votação e a algumas propostas de mudança no Novo Mercado foi levado à B3 no início de março, numa correspondência assinada por um grupo de dez empresas “de dono”: Intelbras, Iochpe-Maxion, LOG Commercial Properties, Marfrig, BRF, MRV & Co, Porto, Rede D’Or São Luiz, Suzano e WEG).

No texto, ao qual o Brazil Journal teve acesso, o grupo diz que em algumas propostas de mudança a B3 estaria “adentrando em esferas de tutela do investidor, a quem sempre caberá deliberar sobre parâmetros de governança compatíveis com sua estratégia de investimentos.”

Entre as 25 propostas da Bolsa, as que geraram mais discussão referem-se a regras para overboarding [o acúmulo de conselhos por parte de um mesmo indivíduo] e independência dos conselhos de administração; a criação de um “alerta” para empresas em recuperação judicial ou com atraso na divulgação de resultados, entre outras situações; e a exigência de uma declaração de confiabilidade nas demonstrações financeiras assinada pelo CEO e pelo CFO.

O grupo de 10 empresas pede a “criação de mais um segmento que traga as condições ora pretendidas” pela Bolsa. Sem isso, diz a manifestação, B3 deveria adotar uma sistemática diferenciada de votação para que companhias com posições dissidentes tivessem voz e capacidade de divergir. Isso porque, no sistema atual, “a  abstenção é considerada como concordância tácita”, o que é “ainda mais sensível” e leva a um “cenário de pouca paridade e insegurança”. 

Para o grupo, neste formato a alternativa para a companhia que discorda seria deixar o Novo Mercado, o que é “excessivamente oneroso”. 

As 10 companhias pedem que, no contexto de mudanças tão significativas, a Bolsa deveria permitir uma dispensa de OPA – para quem não gostar das novas regras, se aprovadas – ou permitir que os controladores votem nas deliberações sobre deslistagem do segmento. 

Uma fonte ligada às empresas disse ao Brazil Journal que a Bolsa precisa ouvir mais as empresas, que são suas “clientes”, e deveria primeiro revisar o sistema de votação para depois levar adiante a reforma atual. Segundo ele, votar contra propostas expõe as companhias, que podem ficar marcadas como sendo “contra melhorias de governança”.  

A B3 discute com o mercado há mais de um ano a revisão das regras do segmento. Duas rodadas de audiência pública receberam 76 manifestações por escrito de agentes do mercado. A Bolsa também fez mais de 60 reuniões, individuais e coletivas, com mais de 120 companhias, além de associações e investidores.

Flavia Mouta, a diretora de emissores e relacionamento da B3, disse que essa consulta pública com o mercado não é obrigatória, já que não está prevista no regulamento do segmento. 

“Mesmo assim, antes de propor mudanças, a Bolsa sempre abre a discussão para ouvir a todos e calibrar os diferentes pontos de vista diante da realidade do mercado brasileiro. Algumas sugestões foram alteradas e outras retiradas, inclusive,” disse Flavia. “E se as companhias não quiserem mudanças, é só votar contra.” 

A diretora da B3 disse ainda que a Bolsa vem atendendo a pedidos das companhias: ampliou o prazo de votação de 1 mês para 3 meses, até 30 de junho; permitiu que as 25 propostas fossem votadas individualmente, em vez de em blocos, e já se comprometeu a rediscutir o sistema de votação dentro de seis meses. 

“Mas a reforma do sistema de votação não faz parte do escopo desta reforma, que estamos discutindo há mais de um ano. Vamos primeiro encerrar esta etapa para depois abrir uma nova discussão sobre o que está aparecendo só agora.”

Segundo a executiva, regras de conselho e de administradores são “regras-mãe” da governança corporativa, e “estão sim dentro do escopo do processo de evolução das normas,” disse Flavia. “A Bolsa só não pode colocar uma regra nova de um dia para o outro; tem de cumprir o rito de votação do Novo Mercado.”

Maria Helena Santana, uma ex-presidente da CVM que foi a diretora da antiga Bovespa e responsável pela implementação do Novo Mercado, disse que o sistema de votação das regras é atípico, mas foi criado para incentivar a adesão das companhias ao segmento.

“Para garantir a adesão das empresas, foi necessário dar a elas esse poder de veto em relação a mudanças. Mas o natural em regulamentos de listagem das bolsas pelo mundo é que as mudanças sejam estabelecidas pela Bolsa apenas, uma vez que são condições para fazer parte daquele lugar,” disse Maria Helena.

“O administrador de mercado é o maior interessado em compatibilizar as perspectivas dos vários stakeholders.  As companhias podem ter interesses muito diversos e discrepantes até mesmo entre elas.” 

Mauro Cunha, o ex-presidente da Amec (Associação de Investidores no Mercado de Capitais) disse que a Abrasca é a “vanguarda do atraso” no mercado de capitais brasileiro, sendo sempre contra tudo que se refira à melhoria de proteções aos investidores.  

“Quem entrou no Novo Mercado assinou um contrato de adesão e está de acordo que as regras vão evoluir ao longo do tempo,” disse Cunha. Existe uma prerrogativa de que quando se propõe uma mudança de regras, se um determinado número de empresas for contra, não haverá mudança. Do ponto de vista prático, se tem inércia é porque a empresa não está ‘dando bola’ para o assunto e, se é assim, ela não tem nada contra, por isso é possível assumir que está a favor.” 

A fonte próxima às companhias disse que não se pode desconsiderar que a B3 é um monopólio. Mesmo nesse cenário, Maria Helena, a ex-CVM, argumenta que critérios de governança não são determinantes na decisão de uma empresa se listar numa Bolsa e não em outra, nos países em que há mais de uma opção. 

Cesário, da Abrasca, disse que nunca viu estudos comparativos que mostrem como as diversas bolsas pelo mundo alteram seus regulamentos; e que a preocupação dos associados é com a competitividade “do nosso mercado”. 

“A discussão tem de ser a partir do ‘must have’ e do ‘nice to have’. Os sinais não são animadores. Estamos vendo muitos fechamentos de capital, muitas empresas falando sobre isso abertamente ou internamente. Temos companhias de todos os portes decidindo se listar lá fora, em diferentes lugares,” disse o presidente-executivo da Abrasca. 

“Há uma discussão muito importante aqui, para além do Novo Mercado, que é como a gente mantém o nosso mercado de capitais competitivo globalmente. Essa é uma prioridade muito séria.”