Quando a peregrinação à Catedral de Santiago de Compostela teve início, no século IX, era mais fácil entender. A Idade Média era uma época fortemente mística, acreditava-se que a peregrinação purgava os pecados e, em muitos casos, dava isenção de impostos (benefício concreto o bastante para ser compreensível ainda hoje).
Mais difícil é compreender o que anima os peregrinos atuais. Que não são poucos: apenas em 2019, mais de 300 mil pessoas completaram o Caminho de Santiago.
Em especial, por que alguém “normal” — não místico, não religioso, não esportista, não alternativo (meu caso) — decide fazer o Caminho?
“Porque está lá”, respondeu o montanhista inglês George Leigh Mallory quando lhe perguntaram por que insistia em escalar o Monte Everest, empreendimento considerado impossível na época. Afora a provocação, a resposta revela que muitas vezes tomamos decisões por motivos que nem nós mesmos compreendemos. Não é por acaso que, no início do Caminho, os peregrinos perguntam-se uns aos outros, incessantemente, por que fazem o Caminho (“porque está lá” foi, muitas vezes, minha resposta): eles tentam descobrir qual é sua própria motivação.
Livros como ‘O Diário de um Mago’, de Paulo Coelho, e ‘O Caminho: Uma Jornada do Espírito’, de Shirley MacLaine, criaram para o Caminho uma reputação de misticismo alternativo, mas a verdade é que quase ninguém está lá em busca de uma revelação esotérica. Há quem faça o Caminho por motivos religiosos convencionais, mas é a minoria: a maioria vai por questões mais mundanas.
Alguns simplesmente gostam de caminhar, ou do exercício físico. Outros buscam a aventura, o contato com a Natureza, a oportunidade de fazer algo diferente, fora do ramerrão cotidiano. A história, a cultura, a arquitetura, as paisagens deslumbrantes também exercem seu fascínio. E o desafio de se superar alimenta a autoestima. Mas o que a maioria quer, mesmo, é se desconectar de sua vida “normal”. Obter paz e tranquilidade para refrescar a cabeça ou para pensar (em geral, vem uma coisa seguida da outra). Alguns têm decisões difíceis a tomar, outros precisam processar uma perda, quase todos querem encerrar uma etapa para começar uma nova.
Há a escritora que perdeu o marido precocemente; o empresário que quebrou; o milionário que não se acostumou com a aposentadoria; o homem casado com uma alcoólatra; o irlandês que não pode ser separar porque é católico; a americana que não consegue se comprometer com nada; o inglês com dificuldade para escolher uma profissão; a indiana que não quer voltar para a Índia; o dinamarquês responsável pela morte do filho bebê, e por isso abandonado pela mulher; a babá estuprada na infância que se envolveu com drogas. Há todo tipo de gente no Caminho, e não são poucos os que têm problemas maiores do que os nossos. (Todas essas histórias, e muitas outras, estão em meu livro “O Destino é o Caminho,” Edições de Janeiro, 176 páginas.)
O Caminho de Santiago é o melhor lugar do mundo para quem quer refrescar a cabeça ou pensar. A liberdade é absoluta, cada um faz o que quer, não há decisões a tomar; a vida é simples, barata, descomplicada, escorre sem pressa, cada peregrino no seu ritmo. O Caminho físico é um só, mas cada um tem seu caminho interno, e ninguém dá palpite no caminho de ninguém.
É uma boa metáfora da vida propriamente dita. O começo é inseguro, hesitante, tememos o desconhecido, o esforço e a dor. Por mais gente que haja em volta, estamos sós: cada um tem seu ritmo, pondera questões que são só suas. Enfrentamos obstáculos pequenos e grandes, desfrutamos de pequenas alegrias e de momentos de elevação.
Fazemos amigos com quem dividimos alegrias e dificuldades, que nos ajudam a seguir em frente, tornam a travessia mais fácil; há encontros alegres, ocasionalmente especiais, e raros são desagradáveis (nisto, o Caminho é diferente da vida). E, às vezes, o amor acontece: com vida curta e data certa para acabar, o amor tem leveza, premência e entrega incomuns na vida normal.
A rigor, não sabemos o que estamos fazendo ali, mas sabemos que é preciso seguir em frente. A única certeza é que o Caminho vai acabar: se tudo der certo, acaba em Compostela, mas pode acabar a qualquer momento, sem aviso. No processo, erramos, nos perdemos, evoluímos. A experiência do Caminho é profunda e transformadora, e o que se aprende nele permanece como baliza para tudo o que se faz depois.
No começo do Caminho, o peregrino se pergunta, cheio de perplexidade, por que decidiu fazê-lo. Ao concluí-lo, a pergunta não é mais por que, mas quando: quando ele fará o Caminho novamente.
Ricardo Rangel foi diretor da Icatu Holding, sócio-diretor da Conspiração Filmes e candidato a deputado federal pelo do Rio de Janeiro. Assina uma coluna de análise política na revista Veja e está lançando “O Destino é o Caminho — Uma Crônica do Caminho de Santiago”, em que conta sua jornada de quase 900 km a pé pelo norte da Espanha.