As ruas do Centro do Rio testemunharam uma procissão de imortais na quinta-feira.
Após votarem pela admissão de um novo colega, os membros da Academia Brasileira de Letras saíram a pé de sua sede no Castelo e caminharam até a Cinelândia.
A trinta andares da praça, quem os esperava era Milton Hatoum, o mais novo imortal do País. Um dos mais premiados e cultuados romancistas brasileiros, autor de Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte, todos vencedores do Prêmio Jabuti, Hatoum nasceu em Manaus, perambulou pela Europa, onde estudou e trabalhou, e hoje mora em São Paulo.
Na sede da editora que o publica desde 1989, a Companhia das Letras, em meio a estantes de madeira clara, com espaços abertos de trabalho, fez-se um ambiente informal e sem qualquer pompa, com conversas atentas e generosas. Puro Milton Hatoum.
Se a imortalidade valesse para a carne e não apenas para a obra, talvez Hatoum tivesse desejado a presença de Flaubert. Ou, considerando os tempos em que vivemos, talvez invocasse o escritor e professor de Columbia, Edward Saïd.
Dele, Hatoum traduziu para o português Representações do Intelectual, uma obra que se debruça sobre a figura do intelectual público, uma raça de gente que veio ao mundo para – através da escrita e da fala – “perturbar o status quo”, ser independente, e independentemente de filiação ideológica, lutar contra toda e qualquer opressão, colocando-se sempre ao lado do mais fraco.
Convencionou-se definir o intelectual público como alguém que “fala a verdade ao poder”, mas Saïd o pensava como um marginal.
“É uma condição solitária, sim, mas é sempre melhor do que uma tolerância gregária para com o estado das coisas,” escreveu Saïd, na tradução de Hatoum.
O intelectual público é alguém que não perde a capacidade de se indignar – algo que Betinho de Souza recomendava a todos nós. Talvez Betinho e também Hatoum, Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez, concordassem, ou concordem, que não basta a indignação. É necessária “uma erudição implacável”, como definiu Foucault.
Para Saïd é preciso também “um sentido do dramático e do insurgente, aproveitando ao máximo as raras oportunidades que se tem para falar, cativando a atenção do público, saindo-se melhor na troca de farpas, no humor e no debate do que os oponentes.”
O debate público brasileiro precisa de uma boa chacoalhada para se tornar mais qualificado e embasado em evidências. Temos muito a fazer.
Precisamos realizar uma Reforma Administrativa que faça o Estado funcionar melhor, e uma reforma integral dos impostos de renda e patrimônio para termos mais crescimento. Mas acima de tudo – e para conseguir tudo isso – precisamos de mais perturbadores com erudição, graça e grandiosidade.
Guilherme Cezar Coelho adaptou para o cinema “Órfãos do Eldorado”, de Milton Hatoum.