Se o clichê já não estivesse desgastado demais, seria natural classificar Evandro Teixeira como testemunha ocular da história.
Mas o jargão não apenas ficou ultrapassado como também se mostrou restrito para encapsular a grandeza do fotógrafo que morreu na última segunda-feira, aos 88 anos, em decorrência de uma pneumonia.
Evandro Teixeira talvez nem tenha sido o maior fotógrafo do Brasil – uma terra pródiga em mestres de primeira linha como Alécio de Andrade, Otto Stupakoff, Erno Schneider, Walter Firmo e Sebastião Salgado, todos premiados aqui e alhures – mas foi sem dúvida o mais brasileiro dos repórteres fotográficos.
Por tudo aquilo que o olhar de Evandro flagrou, é possível compor o mais panorâmico retrato da vida brasileira das últimas seis décadas, aí incluídos protestos políticos, conflitos sociais, cenas do cotidiano e personalidades do futebol, das artes e da arena política.
Sua escola foi o antigo Jornal do Brasil, onde entrou no começo da década de 60 e por lá permaneceu por 47 anos. Suas aulas – sem didatismo, quase espontâneas – se davam nas ruas, local em que sua percepção aguda permitia a observação do detalhe (um estudante caindo enquanto era perseguido por dois policiais – Imagem 1) à grandiosidade (a Cinelândia lotada e, ao fundo, a faixa com as inscrições “Abaixo a ditadura Povo no poder” – Imagem 2).
Baiano de Irajuba, onde nasceu no Natal de 1935, Evandro deixou a cidade, a 307 quilômetros de Salvador, ainda adolescente. A primeira parada, em 1950, foi em Jequié, onde trabalhou no jornal local e juntou dinheiro para comprar sua primeira máquina fotográfica.
De lá passou por Ipiaú e dali para Salvador – quando fez um curso de fotografia por correspondência com José Medeiros, através da revista O Cruzeiro – até chegar ao Rio com uma carta de recomendação para trabalhar no Diário da Noite – apenas uma pequena escala para entrar, logo a seguir, em 1963, no JB.
O momento – jornalisticamente falando – não poderia ser mais propício. O início da carreira de Evandro coincide com os primeiros atropelos da ditadura militar e, logo depois, com o tsunami provocado pelas manifestações populares.
Além do olhar afiado, outra de suas virtudes era a capacidade de se camuflar, de passar quase despercebido. No registro que fez da ocupação do Forte de Copacabana em 1º de abril de 1964, Evandro precisou se disfarçar, esconder a câmera e, feita a foto, guardar o filme na meia. A estratégia deu certo. No dia seguinte a primeira página do JB estampava o resultado: militares em contraluz debaixo da chuva – Imagem 3.
A consagração e o reconhecimento viriam quatro anos depois, quando Evandro cobriu para o JB as manifestações do movimento estudantil no Rio e a repressão da ditadura. Está na memória de todos – dos que viveram o período e também dos que não viveram – imagens como o confronto de estudantes e policiais a cavalo no Centro do Rio (Imagem 4) e a multidão da Passeata dos Cem Mil.
Para Fernando Gabeira, colega de Evandro no JB nos anos 60 – antes que ele, Gabeira, entrasse para a luta armada e fosse viver na clandestinidade – o fotógrafo foi “um dos maiores de toda a história do JB, fundamental no registro daquela época e na denúncia da violência da ditadura”.
Evandro não ficou restrito a ditaduras e passeatas. Viajou ao Chile, onde registrou a agonia do governo de Salvador Allende e os últimos dias do poeta Pablo Neruda (Imagem 5). Autorizado por Dona Matilde, viúva do poeta, Evandro foi o único a ter permissão para entrar no hospital e registrar os instantes mais íntimos, imediatos após a morte.
Também eternizou ídolos como Pelé e Ayrton Senna, cobriu as visitas ao Brasil da Rainha Elizabeth (Imagem 6) e do Papa João Paulo II, descobriu ângulos insuspeitos de Chico Buarque, Vinicius de Moraes e Tom Jobim (é dele a divertida foto em que o trio está deitado sobre as mesas da Churrascaria Carreta – Imagem 7).
Em 1967, Evandro foi incumbido de uma pauta chata e protocolar: registrar, no Aterro do Flamengo, a exposição de armamento bélico que marcava o centenário da batalha do Tuiuti, na Guerra do Paraguai. Como a sorte ajuda os grandes fotógrafos, ele observava as baionetas quando foi surpreendido por duas libélulas que pousaram nas armas. Nascia ali mais uma primeira página clássica do JB, e também a revolta da cúpula militar, que chamou Evandro para dar explicações pelo que foi considerado um desrespeito com as Forças Armadas.
Rogério Reis conviveu por 47 anos com Evandro. “Fui seu estagiário, colega e chefe,” lembra Rogério, lembrando que quando entrou no Jornal do Brasil Evandro já era o mais experiente dos fotógrafos. “E mesmo com toda essa bagagem, ele se recusava a ser editor, o que demonstra outra faceta da sua sabedoria.”
“Ele sempre apostava que podia trazer algo original e sempre garantia a imagem, um comportamento que também servia de estímulo aos jovens fotógrafos”. Rogério destaca ainda que a abordagem informal e descontraída de Evandro junto a um público desconhecido o fez refletir até sobre os seus quatro anos de faculdade de Comunicação. “Com Evandro, fui entendendo a importância da conexão com as pessoas no resultado do nosso trabalho.”
Outro contemporâneo de Evandro foi o fotógrafo gaúcho Ricardo Chaves, o Kadão. Os dois nunca trabalharam na mesma redação, mas dividiram coberturas como as viagens do Papa pelas capitais brasileiras, além do acompanhamento das campanhas presidenciais; Evandro pelo JB, e Kadão pela Veja e depois pelo Estadão. “Ele era inquieto e imprevisível,” diz Kadão, lembrando que nas coberturas era preciso ficar atento não apenas aos fatos e às autoridades, mas também ao que ele estava fazendo. “Quando todos menos esperavam, o Evandro encontrava um ângulo, uma abordagem diferente.”
Sua última grande obra foi um ajuste de contas com a história de seu Estado natal, com a viagem que fez ao sertão da Bahia em 1994. Era também um reencontro com suas raízes.
O local da Guerra de Canudos, em que uma comunidade sertaneja liderada por Antônio Conselheiro foi massacrada pelo Exército, rendeu a Evandro as fotos que compuseram o livro Canudos: 100 Anos.
Evandro viveu ainda o suficiente para ser tema de livros e de teses acadêmicas, ganhar um documentário em sua homenagem (Instantâneos da Realidade, de Paulo Fontenelle) e ser exaltado por parceiros e discípulos. Dentre os colegas de redação o maior reconhecimento veio do poeta Carlos Drummond de Andrade, que, encantado com o trabalho do fotógrafo, escreveu o poema “Diante das fotos de Evandro Teixeira”, com versos como: “Fotografia – é o codinome/da mais aguda percepção/que a nós mesmos nos vai mostrando/e da evanescência de tudo/edifica uma permanência, cristal do tempo no papel”.
Em 2019, Evandro teve seu colossal acervo – com mais de 150 mil fotos – incorporado pelo Instituto Moreira Salles. Quatro anos depois, uma nova homenagem: a inauguração da mostra “Fotojornalismo e ditadura: Brasil 1964/Chile 1973”, no Museu da Memória, em Santiago. No discurso de saudação, Evandro ergueu a câmera e disse: “Esta foi a minha arma contra a ditadura no Brasil e no Chile!”
O talento e o reconhecimento nunca fizeram dele alguém inacessível. Dos orgulhos que trago da militância jornalística está o fato de eu ter sido seu colega – ele já um nome consagrado, eu pouco mais que um foca. Tive a honra de dividir algumas pautas com ele no JB, em 1993/1994, além de alguns almoços no restaurante do jornal e outras tantas conversas pelos corredores da redação.
Nas pautas, mostrava seu estilo: gostava de se misturar, de ouvir conversas paralelas, de se integrar à paisagem, e só chamava a atenção por quase sempre carregar uma pequena escada de três degraus, sua parceira indispensável para fazer tomadas “aéreas”.
A escadinha de Evandro alcança mais longe que um drone.