Eu tinha 16 anos quando a ouvi pela primeira vez.
 
Naquela tarde eu havia chegado cedo ao conservatório Alberto Nepomuceno, em Fortaleza, e, ao entrar no longo corredor com suas inúmeras salas com portas sempre entreabertas e caminhar até aquela onde teria minha aula, percebi um som que preenchia todo o espaço. 

Era a balada de “Senta de Der fliegende Holländer”, de Wagner, uma ária que eu conhecia bem.

O que me perturbava era aquela voz. Quem estava cantando?  Pensei em Flagstad, Nilsson, mas o que eu ouvia era não apenas perfeito, mas arrebatador.
 
Vencendo uma timidez que na época beirava o mórbido, entrei na sala onde duas moças com um gravador tipo cassete escutavam a ária com tanta atenção que demoraram em notar a minha presença.  Quando finalmente a música acabou, pedi licença e perguntei quem estava cantando, e foi aí que me disseram: “Jessye Norman”. 

E acrescentaram com certo prazer, “essa cantora é o desespero dos alemães! Além de ser norte-americana, é negra”, e portanto longe do ideal de heroínas wagnerianas.  E ainda assim, não havia no mundo quem cantasse Wagner melhor que ela.

A partir desse encontro, iniciou-se uma admiração que dura até hoje em minha vida: a busca por discos, gravações, vídeos e o que mais fosse possível adquirir sobre a diva. 

Jessye Mae Norman nasceu em 15 de setembro de 1945 em Augusta, na Georgia, filha de um vendedor de seguros e de uma professora. Cresceu numa casa extremamente musical e, como muitas outras cantoras nos Estados Unidos, começou a cantar na igreja local. 
 
Aos nove anos, ganhou de aniversário um pequeno rádio onde escutava aos sábados as transmissões de ópera do Metropolitan de Nova Iorque.

“Lembro-me de ter pensado que as histórias das óperas não eram muito diferentes das outras: um rapaz conhece uma moça, apaixonam-se, por alguma razão não podem ficar juntos e, na maior parte das vezes, não são felizes para sempre”, escreveu em sua autobiografia, Stand Up Straight and Sing!, publicada em 2014.
 
Fortemente influenciada por cantoras afroamericanas como Marian Anderson (1897-1993) e Leontyne Price (1927), aos 16 anos Jessye ganhou uma bolsa integral para estudar na Howard University, em Washington.  Cantava em corais e participava de competições de canto. Após se formar em 1967, seguiu os estudos no Conservatório Peabody em Baltimore, e posteriormente na Universidade de Michigan.
 
Filha do Sul dos Estados Unidos, Jessye conhecia bem como o mundo tratava cantores que não fossem brancos. Marian Anderson, por exemplo, não era autorizada a se apresentar em salas de concerto de maior prestígio até 1955. Jessye percebeu que a América talvez fosse pequena demais para ela e, em 1968, mudou-se para a Europa. Um ano depois, foi contratada pela Ópera Alemã de Berlim e estreou como a Elisabeth de “Tannhäuser”, de Wagner. 

Impressionada, a crítica a declarou “a maior voz desde a soprano alemã Lotte Lehmann”.

A partir disso, ganhou a Europa. Cantou no Scala de Milão e na Royal Opera House de Londres e, nos anos 70, já reconhecida como uma das maiores vozes no mundo da ópera, dedicou-se a recitais e aos principais festivais de música erudita, como Salzburgo, Edimburgo, Aix-en-Provence, entre outros.

Jessye Norman era poliglota: falava alemão, italiano, francês e inglês. Em entrevistas, costumava dizer que era necessário compreender a palavra cantada em seu mais profundo significado, não se vendo capaz de cantar num idioma que não dominasse. Recentemente, disse lamentar não ter tido tempo para aprender russo, o que a privou de cantar um repertório maravilhoso.
 
De volta aos Estados Unidos, sua estréia no Metropolitan se deu em 1983 como a Cassandra em “Os Troianos de Berlioz”. Favorita de maestros como Klaus Tennstedt, Karajan, Masur, entre outros, possuía uma voz extremamente versátil  com registros de soprano e mezzo-soprano e um total controle dos tons mais baixos, sendo capaz de cantar uma enorme variedade de papéis — foram mais de 30, encantando platéias com Mozart, Wagner, Beethoven, Strauss, Purcell. 

Cantou na posse de dois presidentes americanos — Ronald Reagan e Bill Clinton — e na comemoração dos 200 anos da Revolução Francesa, em 1989, foi a escolhida para interpretar “A Marselhesa”.

Somente no começo do século XXI sua voz começou a apresentar um certo cansaço, não impedindo, no entanto, registros maravilhosos como o disco realizado em parceria com Michel Legrand. Livre de estilos, em paralelo à sua carreira operística apresentou-se também em espectáculos teatrais sob a direção de Bob Wilson e gravou discos de spirituals. 
 
Na segunda-feira passada, Jessye Norman sucumbiu a um choque séptico. Tinha 74 anos. 

Antes de partir, criou em sua cidade natal a Jessye Norman School of the Arts, para crianças pobres. Vinda de uma família onde a educação foi fundamental para escapar da discriminação, Jessye continuará fazendo a diferença e inspirando novas gerações.

Henry David Thoreau escreveu que “todas as coisas boas são livres e selvagens.” Jessye Norman era a encarnação desta poesia:  seu talento era uma força da natureza, e sua força interna a manteve livre de uma sociedade que facilmente a teria aprisionado.

Nazareno é artista plástico.