Em versos que estão entre os mais poéticos de sua obra, Caetano canta:

“Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante/

De uma estrela que virá numa velocidade estonteante/

E pousará no coração do hemisfério sul.”

Jaider Esbell foi essa estrela brilhante, que em uma passagem estonteante conquistou o coração do hemisfério.

O artista, escritor e curador indígena da etnia Makuxi partiu no auge de uma carreira que atraiu um novo olhar para os povos indígenas em meio a um longo e doloroso processo de apagamento histórico.

11753 c3197034 f61b d9b3 9b55 077976e03f3d“Os intelectuais indígenas foram rechaçados, seja na arte ou no pensamento,” dizia Jaider.

Antes do topo — ser considerado por muitos a espinha dorsal da 34ª Bienal — o caminho trilhado por Jaider até sua partida é de fato singular.

Nascido em 1979, em Normandia, estado de Roraima, onde viveu até os 18 anos, Jaider descobriu suas habilidades artísticas na infância, mas percorreu outros caminhos profissionais até se dedicar totalmente à arte.

Aos 19, passou no concurso de eletricista de linha de transmissão da Eletrobrás, em Boa Vista, dando início a uma carreira de 15 anos na estatal. Aproveitou o tempo na Eletrobrás para criar ações de educação ambiental, atividades socioculturais, pesquisas e pontes com diversas comunidades indígenas, recebendo diversos prêmios internos. Em paralelo, formou-se em Geografia e ganhou a Bolsa Funarte de Criação Literária, lançando, ainda em 2012, seu primeiro livro, Terreiro de Makunaima – Mitos, lendas e estórias em vivências.

Chama atenção a coerência de sua vida com seu propósito. Ainda que sempre soubesse que era artista, tornou toda experiência – mesmo que não diretamente relacionada à arte – uma oportunidade de se aprimorar e promover os povos indígenas. Jaider ultrapassava os limites de tudo que conquistava, agregando ideias e pessoas em seu percurso.

Era inevitável que, eventualmente, a arte tomasse conta de sua vida. Deixou a Eletrobrás em 2013 para participar de exposições no Brasil e no exterior, além de escrever livros e artigos, que distribuía nas mais variadas mídias, desenvolvendo o que chamou de “artevismo.”

Excelente comunicador, soube usar as mídias sociais para ampliar sua voz para outros públicos e disseminar projetos de diversos povos indígenas.

Em 2016, Jaider vence o Prêmio PIPA online, um dos maiores da arte contemporânea do País, e passa a ser conhecido nacionalmente.  A partir dali, estava “de fato e de direito, falando a língua universal, a linguagem das artes,” observou certa vez.

Jaider “era alguém generoso e comprometido, com uma capacidade impressionante de estabelecer vínculos e estimular encontros entre diferentes pessoas, comunidades e saberes”, disse Jacopo Crivelli Visconti, curador-geral da 34ª Bienal de São Paulo.

Seu pensamento e articulação artística marcaram a 34ª Bienal, que além do espaço expositivo do pavilhão se estendeu por outras instituições de arte, como o Museu de Arte Moderna (MAM-SP), onde foi curador da mostra Moquém_Surarî: arte indígena contemporânea, que reúne 34 artistas de diversos povos indígenas.

O presidente da Bienal, José Olympio Pereira, disse ao Brazil Journal que a ideia dos curadores da Bienal era realizar no MAM-SP uma exposição solo de Jaider, mas ele não quis participar sozinho – isso seria desperdiçar uma chance de dar visibilidade a outros artistas indígenas.

Na 34ª Bienal, “sua contribuição se estendeu muito além da apresentação de seus próprios trabalhos, envolvendo trocas intensas com os curadores e outros artistas da mostra, uma atuação curatorial histórica,” disse José Olympio.

Há menos de um mês, em Paris, o Pompidou adquiriu os trabalhos “Carta ao Velho Mundo” (2018-2019) e “Na Terra Sem Males” (2021). As obras foram indicadas por Paulo Miyada, curador-adjunto para a América Latina do museu e também curador da Bienal. Em suas palavras, “uma obra bastante icônica da capacidade do Jaider de combinar muitos mundos; essa relação pictórica que cada vez que você olha você percebe um símbolo novo, uma narrativa nova, um outro modo espacial, então é um modo muito único de pensar a imagem e a representação.”

Jaider costumava escrever e dar palestras em suas exposições, incluindo um ritual espiritual. Em reportagem da Amazônia Real, explicou que quase tudo que o indígena tinha foi apropriado, para que se repetisse um padrão religioso, moral e artístico europeu.

“Agora, querem se apropriar também do que não entendem: o mistério, a magia. Questões como o sagrado, a cosmogonia, a mitologia, a comunhão ambiental, para a compreensão dos povos indígenas, não se prestam a um tipo de apreciação tradicional, nem à rotulação costumeira.”

A espiritualidade era indissociável de sua arte e vida. “Sabíamos, pois sábios éramos. Amávamo-nos sem nem mandar ou exigir, pois era essencial o dito natural. Enquanto dentro, não enxergávamos o fora, embora suspeitássemos de sua força; seguíamos e cá estamos, à frente. Uns de nós sempre trarão reflexos, complexos; é como passam. Atravessamentos constantes, instantes, eternidades,” escreveu.

“É como passam”… Há uma eternidade na passagem de Jaider, na forma como viveu e em tudo que produziu. Cabe a todos nós — não apenas no mundo das artes — estudar sua obra, ler seus livros, e aprender a valorizar, respeitar e cuidar dos povos indígenas. No catálogo da Bienal, o artista escreveu: “Tudo tem espírito, por assim dizer, e nós estamos pobres nisso.”

 

Rita Drummond escreve sobre arte no Brazil Journal.