Gilberto Chateaubriand, o diplomata de formação e mecenas por paixão que reuniu uma das mais significativas coleções de arte do País sem se guiar pelos caprichos do mercado ou pela moda, morreu nesta quinta-feira, de causas naturais. 

Ele tinha 97 anos. 

Gilberto estava na Fazenda Rio Corrente, sua residência em Porto Ferreira, interior de São Paulo. 

Gilberto Francisco Renato Allard Chateaubriand Bandeira de Melo nasceu em Paris em 24 de maio de 1925, filho do homem mais poderoso do Brasil, Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados.

Gigil, como era chamado familiarmente, teve uma relação conflituosa com o pai. As brigas entre os dois incluíram até a disputa por uma  pintura de Cândido Portinari, Cavalo Empinado, episódio relatado por Fernando Morais na biografia Chatô, o Rei do Brasil. Assis Chateaubriand presenteou o quadro ao filho, mas depois o quis de volta para dá-lo à filha Teresa. Como Gilberto não o devolvesse, o pai então mandou publicar em seus jornais que o quadro havia sido roubado.

Crescer sob a sombra de uma figura dominadora como Chatô — que fundou o MASP extraindo doações de empresários — não pode ter sido fácil, mas Gilberto fez sua própria marca no mundo restrito e competitivo dos colecionadores.  

Sua primeira aquisição foi um Pancetti, que ele comprou em 1952 no ateliê do artista em Salvador. Essa seria sua prática mais comum: conhecer as obras ali onde eram criadas pelos artistas. 

“Gilberto tinha um olhar muito educado, e foi amigo de todos os artistas”, o curador e galerista Max Perlingeiro, da Pinakotheke, amigo de décadas de Gilberto, disse ao Brazil Journal.

Na sua primeira missão diplomática, na França, Gilberto conheceria a escultora Maria Martins, mulher do então embaixador brasileiro no país, Carlos Martins. Em 1955, Maria e Gilberto viajaram a Biot, no sul da França, para conhecer Fernand Leger, o mestre do cubismo. O colecionador lembraria dessa viagem em 1996, na apresentação que escreveu para uma mostra de Maria Martins em uma galeria de Nova York.

No mesmo texto, ele aproximou Maria a Tarsila do Amaral: ambas teriam criado “formas e fábulas” que definiram nossa “compreensão do modernismo”. “Em um país como o Brasil, é um dever dos grandes artistas criar ícones da nossa visão nacional”. A coleção que Gilberto reuniu, com cerca de 8.000 obras de 500 artistas, é um vibrante catálogo dessa “visão nacional”. 

No período em que serviu em Paris, nos anos 50, Gilberto comprou obras de artistas europeus — mas não ficou satisfeito com as aquisições. Na Europa, “era impossível fazer uma coleção com fio condutor”, ele disse numa entrevista de 2012. De volta ao Brasil, em 1962, desfez-se do que havia comprado na Europa e passou a se dedicar à arte moderna brasileira.

A coleção abrigaria algumas das obras mais emblemáticas do modernismo dos anos 20, como Urutu, de Tarsila, e O Farol e A Japonesa, de Anita Malfatti. 

Mas Gilberto foi fundamental sobretudo para os artistas contemporâneos. “A maioria dos artistas dos anos 1960 em diante começaram suas carreiras através do olhar do Gilberto”, diz Perlingeiro, lembrando, entre outros, Antonio Dias, Carlos Vergara, Cildo Meireles e Waltercio Caldas.

O empresário e colecionador Ronaldo Cezar Coelho observa que Gilberto não se limitava aos círculos urbanos: também percorria, de carro, o “Brasil profundo”, em busca de obras da arte popular. Conhecia bem, por exemplo, os artistas de Caruaru, em Pernambuco, como mestre Vitalino. “Ele era um cara inquieto,” define Ronaldo. “Um talento poliédrico, que brilhava em todas as direções.”

Em depoimento ao Brazil Journal, a colecionadora Marta Fadel disse que o Brasil perdeu “o dono de um olhar privilegiado, que enxergava com a alma.”

“Gilberto dizia que esteticamente era muito fácil ser seduzido. ‘Seduzido’ pode ser, mas ‘facilmente’, com certeza não. Tudo que ele tocava tinha o potencial de transformar-se em obra de arte. Ele sabia escolher. Sempre soube. E reconhecia cada uma das suas mais de 8.000 obras, sabendo dizer exatamente em que ano as trouxe para si, para depois, compartilhá-las conosco.”

Para Marta, foi este olhar que trouxe ao Brasil, “para sempre, a presença do gosto acurado pela expressão da tela, do papel e da escultura.”

Os brasileiros podem ter contato com esse olhar privilegiado no MAM. Em 1993, Gilberto Chateaubriand cedeu boa parte de sua coleção – mais de 6.000 obras – ao museu carioca em regime de comodato. 

A doação foi fundamental para revitalizar um museu que em 1978 perdera grande parte do acervo original em um incêndio. “Para sintetizar a personalidade do Gilberto, a palavra é generosidade,” diz  Perlingeiro.

Gilberto deixa o filho Carlos Alberto Chateaubriand – o Cabeto, que hoje é presidente do MAM – além de dois netos e três bisnetos. 

O poeta maranhense Ferreira Gullar escreveu que “a arte existe porque a vida não basta”. Com seu amor à arte, Gilberto Chateubriand fez a vida valer duas vezes.